sexta-feira, 5 de junho de 2020

                                                                   PUDOR

          Certas palavras nos dão a impressão de que voam, ao saírem da boca. "Sílfide", por exemplo. É dizer "Sílfide" e ficar vendo suas evoluções no ar, como as de uma borboleta. Não tem nada a ver com o que a palavra significa. "Sílfide", eu sei, é o feminino de "silfo", o espírito do ar, e quer mesmo dizer uma coisa diáfana, leve, borboleteante. [...] A própria palavra "borboleta" não voa, ou voa mal. Bate as asas, tenta manter-se aérea, mas choca-se contra a parede. Sempre achei que a palavra mais bonita da língua portuguesa é "sobrancelha". Esta não voa, mas paira no ar, como a neblina das manhãs até ser desmanchada pelo sol. Já a terrível palavra "seborreia" escorre pelos cantos da boca e pinga no tapete. 

          "Trilhão" era uma palavra pouco usada, antigamente. Uma pessoa podia nascer e morrer sem jamais ouvir a palavra "trilhão", ou só ouvi-la em vagas especulações sobre as estrelas do Universo. O "trilhão" ficava um pouco antes do infinito. Dizia-se "trilhão" em vez de se dizer "incalculável" ou "sei lá". Certa vez (autobiografia) tive de responder a uma questão de Geografia no colégio. Naquele tempo a pior coisa do mundo era ser chamado a responder qualquer coisa no colégio. De pé, na frente dos outros e –  o pior de tudo –  em voz alta.

          Depois descobri que existem coisas piores, como a miséria, a morte e a comida inglesa. Mas naquela época o pior era aquilo. "Senhor Verissimo!" Era eu. Era irremediavelmente eu. "Responda, qual é a população da China?" Eu não sabia. Estava de pé, na frente dos outros, e tinha que dizer em voz alta o que não sabia. Qual era a população da China? Com alguma presença de espírito, eu poderia dizer: "A senhora quer dizer neste exato momento?", dando a entender que, como o que mais acontece na China é nascer gente, uma resposta exata seria impossível. Mas meu espírito não estava ali. Meu espírito ainda estava em casa, dormindo. "Então, senhor Veríssimo, qual é a população da China?" E eu respondi:

          – Numerosa.

          Ganhei zero, claro. Mas "trilhão", entende, era sinônimo de "numeroso". Não era um número, era uma generalização. Você dizia "trilhão" e a palavra subia como um balão desamarrado, não dava tempo nem para ver a sua cor. E hoje não passa dia em que não se ouve falar em trilhões. O "trilhão" vai, aos poucos, se tornando nosso íntimo. É o mais novo personagem da nossa aflição. Quantos zeros tem um trilhão? Doze, acertei? Se os zeros fossem pneus, o trilhão seria uma jamanta daquelas de carregar gerador para usina atômica parada. Felizmente vem aí uma reforma e outra moeda, com menos zeros e mais respeito. Se não chegaríamos à desmoralização completa.

          – E o troco do meu tri?

          – Serve uma bala?

          Desconfio que o que apressará a reforma é a iminência do quatrilhão. "Quatrilhão" é pior que "seborreia". Depois de dizer "quatrilhão" você tem que pular para trás, senão ele esmaga os seus pés. E "quatrilhão" não é como, por exemplo, "otorrino", que cai no chão e corre para um canto.

          "Quatrilhão" cai, pesadamente, no chão e fica. Você tenta juntar a palavra do chão e ela quebra.  [...]  A mente humana, ou pelo menos a mente brasileira, não está preparada para o "quatrilhão". As futuras gerações precisam ser protegidas do "quatrilhão".  [...]   No momento em que o "quatrilhão" se instalasse no nosso vocabulário cotidiano, mesmo que fosse só para descrever a dívida interna, alguma coisa se romperia na alma brasileira. Seria o caos.

          E "caos", você sabe. É uma palavra chicle-balão. Pode explodir na nossa cara.


   (VERISSIMO, Luis Fernando. Comédias para se ler na escola, 1997).

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Girafa

Leio que no Jardim Zoológico há uma girafa, macho e triste, chamada Santoro, que matou a companheira e, por sua vez, está morrendo de tristeza. Ao lado da notícia, uma foto do animal: o pescoço infinito ergue contra as nuvens do céu uma cabeça de fábula. É a própria imagem da solidão.
Todo homem solitário é uma girafa. Perdoem se deliro, mas é. Como veem, discordo de Kafka, que transformou um homem solitário em inseto. Há os que viram inseto, admito, mas há os que atravessam as ruas vertiginosamente sós, com a cabeça nas nuvens. Se ser solitário é ser girafa, o que não será uma girafa solitária?
Consulto o fascinante livro Mamíferos, editado pelo MEC, aprendo que nas horas de aflição as girafas gemem baixinho — é a sua fala. E, para confirmar minha intuição, leio que, por ter pescoço tão comprido, a girafa não consegue lamber o próprio corpo. É a companheira quem faz esse serviço para ela. Quer dizer que uma girafa solitária não se basta, nem pra se coçar. A forma diz tudo. O pescoço a distancia de si mesma. E penso com mais pena ainda na girafa Inocêncio Santoro, só, no Jardim Zoológico, fitando por cima das árvores um horizonte sem esperanças...
Mistura de bicho e planta, a girafa é quase um ente mitológico. Com sua forma antiga e onírica, ela parece vir de uma idade em que não apenas os homens, mas a própria natureza gostava de sonhar.

(GULLAR, Ferreira. O menino e o arco-íris. São Paulo: Ática, 2001. Págs. 90-92)
Guerra

Estamos em guerra, não há dúvida. Não me refiro à guerra fria entre a URSS e os Estados Unidos nem à guerra econômica deste contra Cuba. Refiro-me à guerra cotidiana, essa que todos nós pelejamos, mal começa o dia. Guerra não declarada, não percebida pela maioria — mas guerra de fato. Nem fria nem quente: morna.
Trata-se de uma guerra minuciosa e sem quartel, sem exércitos formados e sem generais (bem, há os generais, mas, na batalha cotidiana, cada general comanda a si mesmo: e somos todos generais). É a guerra do leite, da carne, do pão, da manteiga, do emprego, do amigo, do inimigo, do lotação, do trem, do elevador. Batalhas tachistas, indeterminadas e sinuosas. Não obstante, duras.
Dentro dessa guerra cotidiana, há batalhas microscópicas: é um sujeito que lhe pisa o pé ou o empurra. Você reclama ou não, revida ou não. O outro também está guerreando, de arma em riste, e lá vai a guerra para diante. E há a guerra subterrânea da memória, a chamada luta intestina do homem consigo mesmo, do adulto com a criança soterrada, do coração com a mente. Olho da janela e vejo a avenida cheia, pessoas que vão e vêm, na aparente tranquilidade desta morna guerra.

Quem me chamou a atenção para esse fato foi um amigo, que entrou comigo numa loja de artigos para homens, na Lapa, há uns seis anos. Havia na vitrina uma camisa simpática e bem barata. O dinheiro era curto e a ocasião, propícia. Entramos para ver, mas o vendedor só nos mostrava camisas que custavam o dobro da exposta. Depois de muito,  confessou que da que estava na vitrina não havia mais em estoque.  Mas o fez com maus modos, e eu revidei: "É por isso que sua loja fica às moscas. Vocês embromam os fregueses”. Disse e fui saindo com meu amigo. E eis que o dono da loja e os empregados avançaram para nós aos insultos. Tratamos evidentemente de dar o fora, contentando-nos com os revides, de longe. Nesta altura, meu amigo teve a frase definitiva: "Vocês estão querendo é guerrear".  Era mesmo.  E nesta batalha estamos todos, inapelavelmente. Todos os dias, tomo meu banho e meu café, visto-me, dou adeus aos meninos e saio para guerrear.  À noite, se volto, volto ileso ou ferido, mas as feridas ninguém vê.

        (GULLAR, Ferreira. O menino e o arco-íris. São Paulo: Ática, 2001. Págs.73-74)

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Dom Ramiro vai à Europa


Ninguém, das centenas de pessoas que estavam àquela tarde no Aeroporto de Ezeiza, poderia imaginar quanto custara ao dr. Ramiro González chegar até ali: maletas fechadas a chave, passaporte e passagem na mão, esperando o momento de embarcar para a distante e mitológica Europa. Mas o fundamental é que estava tudo em ordem. E previsto.
A coisa começou vários meses atrás, quando Ramiro cedeu à pressão da filha e da mulher. "Precisas conhecer a Europa, papai. Chega de trabalhar, trabalhar. Chegaste já aos cinquenta e a vida se vai." Essas últimas palavras fizeram estremecer o acomodado coração de Ramiro: a vida se vai. No dia seguinte, no consultório, entre um cliente e outro, as palavras voltavam-lhe à memória: se vai, se vai... De volta à casa, abriu o jornal e não conseguiu ler as notícias com atenção: Paris, UP; Londres, UP; Roma, Berlim, Milão... Esses nomes de cidades famosas provocavam um redemoinho de sonhos e desejos em sua alma. E medo também. Comparava sua rua tranquila, a sala de sua casa, tudo conhecido e seguro. Por quais ruas e avenidas, por quais quartos de hotéis e restaurantes iria pervagar? Que poderia acontecer com ele e sua pobre mulher soltos num mundo desconhecido? Mas, ao mesmo tempo, lembrava-se de que a vida se ia.
Um belo dia entrou em casa decidido. Chamou a mulher e comunicou-lhe a decisão de ir com ela à Europa.
— Mas aonde? Paris? Londres?
— Ainda não sei. Vamos estudar a coisa pacientemente.
Mas, tomada a decisão, tudo se precipitou. No dia seguinte, entrava em casa carregado de folhetos turísticos, guias de viagem, mapas de cidades. Depois do jantar, ele, a mulher e a filha começaram a examinar os possíveis roteiros. Perderam nisso toda a noite e foram dormir aflitos. No dia seguinte, antes do café da manhã, já estava ele a examinar mapas e rotas aéreas. Saiu, comprou um mapa grande da Europa.  Ao fim de alguns dias, estava traçado o roteiro, e iniciou-se uma nova etapa da "viagem".  
Agora, tratava-se de escolher os hotéis em cada cidade.
— Isso se escolhe lá — sugeriu a mulher impaciente.
— Lá?! Só saio daqui com tudo acertado, ou não vou.    
Visitou agências de turismo, embaixadas, anotou preços, calculou a conversão das moedas, e numa semana definira os hotéis onde ficariam hospedados. Perfeito, mas que faremos nessas cidades? Que lugares visitaremos? A mulher fez cara de aborrecimento. Ele seguiu em frente, pesquisando os pontos turísticos mais interessantes de cada cidade: museus, igrejas...
— Não gosto de museu — declarou a mulher. — Não vou fazer uma viagem tão longa pra me meter numa casa cheia de quadros velhos!
— Quadros velhos, sua ignorante! Obras célebres!
— Quero é passear, conhecer as lojas, as ruas, os lugares bonitos.
— Isso também — admitiu ele.
E com uma caneta ia assinalando, no mapa de Paris, a rua do hotel onde se hospedariam e os diferentes pontos que visitariam.
— Na primeira manhã — dizia ele — sairemos do hotel e caminharemos por esta rua, está vendo aqui?
— Que rua? Isso é um labirinto infernal.
— Esta. Bem, seguiremos até esta esquina, dobraremos à direita, o Louvre está a umas poucas quadras...
— Desse jeito, não vai ser preciso viajar.  Já estás em Paris, caminhando pelas ruas... Que graça tem isso? 
— E que graça tem se perder numa cidade como essa, se mal sabemos algumas palavras em francês?
— Tu, porque eu falo francês correntemente!
— Eu sei!...
Houve atritos, discussões, amuos. Quase cancelam a viagem. Mas para ele isso já era impossível: se metera naquilo até o pescoço. E assim, o coração pulsando forte, Ramiro e a mulher estavam agora ali, em frente ao balcão da Aerolíneas Argentinas, prestes a voar.
E voaram. Despediram-se da filha e dos sogros, e entre vaidosos e assustados entraram no avião que os levaria até Madri, onde fariam uma conexão para Atenas.
Era uma tarde límpida e eles cruzaram o Atlântico sorrindo. Quando chegaram a Madri, muitas horas depois, o avião da conexão havia sido sequestrado. Reinava uma grande confusão no tráfego aéreo. Na confusão, as maletas desapareceram. Foram levados para um hotel que não escolheram, numa cidade que não fazia parte do roteiro que traçaram e passaram a noite lavando camisa, cueca e calcinhas para poder vestir no dia seguinte.
A mulher cantarolava e o olhava de soslaio.
— Os teus planos, hein, Ramiro?

Ele fazia que não ouvia.

      (GULLAR, Ferreira. O menino e o arco-íris. São Paulo: Ática, 2001. pp. 54-57)
O ovo

Aquele restaurante era tão triste como a maioria desses pequenos restaurantes que, depois das sete da noite, dão de comer à fauna dos trabalhadores noturnos. Pessoas sozinhas em mesas de dois e quatro lugares, pessoas que são sempre as mesmas, àquela hora, mas que não se falam nem se cumprimentam. Comem em silêncio e vão embora. O ambiente era esse até que apareceu o homem do ovo, um sujeitinho magro de cara chupada.
– Já escolheu?
– Quero um ovo, mas nem cozido, nem frito, nem quente...
– Como?
– Quero um ovo entre cozido e quente, sabe? Nem muito mole, nem muito duro.
Era natural que a coisa não desse certo. O garçom pediu na cozinha "um ovo cozido mal passado". Trouxe-o para a mesa, o homenzinho olhou desaprovou com a cabeça: estava mole demais. O garçom desculpou-se e prometeu trazer outro ovo, no "ponto" exato. Trouxe. O homenzinho de novo desaprovou: estava duro demais. "Como hoje assim mesmo; amanhã, daremos jeito."
Na noite seguinte, disse ao garçom: "Avisa ao cozinheiro que deixe o ovo ferver durante três minutos e meio, nem mais nem menos". Mas ainda não era dessa vez que se atingiria o ideal. "Sei o que foi" – disse o freguês –, "ele pôs o ovo na caçarola antes da água ferver". O próximo ovo teria mais chance. "Lembre-se: três minutos e meio precisamente." O garçom explicou que não tinha relógio, o cozinheiro também não.
Veio o dono do restaurante. "Precisamos de alguém que controle o tempo de preparo de um ovo”, explicou-lhe o homenzinho. O dono controlaria. "Quando a água ferver, me avise e eu dou o sinal para colocar o ovo na panela. Nosso amigo fica observando o ponteiro de segundos, OK?"
A essa altura o restaurante parara para acompanhar a operação ovo. "Começou a ferver." "Pronto, ponha o ovo na panela." Durante três minutos e meio houve um silêncio total. "Pode tirar", gritou o patrão. E quando o garçom veio com o ovo, os fregueses rodearam a mesa do homenzinho, que já o descascava: "Ótimo".
E a partir desse dia, o restaurante ganhou outra vida: chegada a hora do ovo, todos paravam de comer e ficavam esperando. Nasciam discussões sobre o tempo exato para conseguir um ovo daqueles. "Seu relógio atrasa." "Nada disso, uso relógio de aviador." "Para ovo de casca pintada o tempo é três minutos e cinquenta e oito segundos." "É muito: três e cinquenta e sete." Mais tarde surgiram as apostas e dúzias de ovos eram devorados àquela hora. Em consequência disso, o restaurante prosperou e a freguesia engordou. Mas o homenzinho procurou outro restaurante onde pudesse controlar o tempo exato de seu ovo e comê-lo em paz.


(GULLAR, Ferreira. O menino e o arco-íris. São Paulo: Ática, 2001. pp. 51-53)
Tesouro

Onde tem formiga tem ouro – diziam os mais velhos. E essa afirmativa fabulosa vinha​-nos sempre à lembrança quando as formigas de asa, filhas do Inverno, começavam a brotar das tábuas velhas do assoalho. Cheguei mesmo a propor a meu pai que retirássemos as tábuas do quarto e cavássemos o chão: o ouro compensaria o trabalho.
– Que ouro nada, menino! Aí tem é aranha e barata.
Mas as lendas de tesouro não nasceram sem razão: têm raízes profundas no homem. As crianças, que ainda não têm do mundo uma visão tão dura e pobre, não desistem tão facilmente dos tesouros ocultos. Nós lá de casa não desistimos.
Um belo dia, uma de minhas irmãs sonhou que havia uma caixa de dinheiro enterrada no quintal. Uma voz lhe dissera: “dê cinco passos a partir da mangueira na direção das bananeiras; nesse ponto está o tesouro enterrado”.
Decidimos desenterrá-lo. Tínhamos uma picareta e uma pá, que nos pareceram suficientes para realizar o trabalho. Marcamos a direção, contamos os passos e começamos a cavar. Éramos cinco, contando com a lavadeira, que foi convocada para o serviço extraordinário. Nós nos revezamos e o buraco foi crescendo. Ao meio-dia, quando entramos em casa para almoçar, nossa mãe levou um susto: tínhamos barro dos pés às sobrancelhas. Depois do almoço, com o sol ainda quente, voltamos ao trabalho. E cavamos sem interrupção até à hora do jantar.
Cavávamos e sonhávamos. A dona do tesouro – a que ouvira a voz – prometia repartir as moedas entre todos. A lavadeira teria também uma boa recompensa. Compraríamos roupas novas, brinquedos, doces e daríamos uma festa com orquestra. De minha parte, entre cético e fascinado, pensava apenas na descoberta: seria formidável que tudo fosse verdade, que ali houvesse realmente uma caixa de moedas de ouro.
Os adultos de casa riram muito de nós, à mesa do jantar. Mas ninguém sugeriu que interrompêssemos a escavação. Além do mais, já encontráramos um indício: uma imagem de alumínio representando São Jorge. Ali havia alguma coisa – estávamos convictos. Cavamos noite adentro, à luz de velas.
A faina foi retomada na manhã seguinte, bem cedo. É certo que, a essa altura, a pá e a picareta doíam em nossas mãos cheias de bolhas d'água. O buraco já me batia pela cintura. Em ritmo mais lento atravessamos este segundo dia e interrompemos o trabalho ao anoitecer. Prometêramos continuar durante a noite, mas estávamos exaustos e fomos dormir cedo.
O outro dia amanheceu chovendo, e a chuva durou o dia todo. Não trabalhamos. Na manhã seguinte, o sol se abriu, mas nosso entusiasmo já se tinha fechado. O buraco estava cheio de água e era desagradável mexer com aquela lama.
Faz muitos anos que isso aconteceu. O tempo deve ter fechado o buraco que nosso sonho abrira em vão. Mas aqueles dois dias de trabalho em equipe valeram o ouro que não existia em nosso quintal.

                 (GULLAR, Ferreira. O menino e o arco-íris. São Paulo: Ática, 2001. Págs.15-16)
                                                                    O menino e o arco-íris 

          Era uma vez um menino curioso e entediado. Começou assustando-se com as cadeiras, as mesas e os demais objetos domésticos. Apalpava-os, mordia-os e jogava-os no chão: esperava certamente uma resposta que os objetos não lhe davam. Descobriu alguns objetos mais interessantes que os sapatos: os copos – estes, quando atirados ao chão, quebravam-se. Já era alguma coisa, pelo menos não permaneciam os mesmos depois da ação. Mas logo o menino (que era profundamente entediado) cansou-se dos copos: no fim de tudo era vidro e só vidro. 
          Mais tarde pôde passar para o quintal e descobriu as galinhas e as plantas. Já eram mais interessantes, sobretudo as galinhas, que falavam uma língua incompreensível e bicavam a terra. Conheceu o peru, a galinha-d´Angola e o pavão. Mas logo se acostumou a todos eles, e continuou entediado como sempre. 
           Não pensava, não indagava com palavras, mas explorava sem cessar a realidade. Quando pôde sair à rua, teve novas esperanças: um dia escapou e percorreu o maior espaço possível, ruas, praças, largos onde meninos jogavam futebol, viu igrejas, automóveis e um trator que modificava um terreno. Perdeu-se. Fugiu outra vez para ver o trator trabalhando. Mas eis que o trabalho do trator deu na banalidade: canteiros para flores convencionais, um coreto etc. E o menino cansou-se da rua, voltou para o seu quintal. 
         Começou a cavar. Estava certo de que encontraria, ali, alguma coisa surpreendente. Cavou, cavou: achou uma rodela de metal, correu com ela para limpá-la e se decepcionou – era um níquel de 300 réis. Saiu de casa para cavar num terreno baldio e lá não encontrou nada mais que um caco azul de vidro de leite magnésia. Acreditou, de início, tratar-se de fragmento de osso de algum animal estranho: osso de anjo? Não era.
          O tédio levou o menino aos jogos de azar, aos banhos de mar e às viagens para a outra margem do rio. A margem de lá era igual à de cá. O menino cresceu e, no amor como no cinema, não encontrou o que procurava. Um dia, passando por um córrego, viu que as águas eram coloridas. Desceu pela margem, examinou: eram coloridas! 
           Desde então, todos os dias dava um jeito de ir ver as cores do córrego. Mas quando alguém lhe disse que o colorido das águas provinha de uma lavanderia próxima, começou a gritar que não, que as águas vinham do arco-íris. Foi recolhido ao manicômio. E daí? 
                   (GULLAR, Ferreira. O menino e o arco-íris. São Paulo: Ática, 2001. págs.11-12