Kanniferstan – Conto alemão
Ouvi esta história
faz muito tempo, quando eu era pequena, ainda antes de chegar ao Brasil, vinda
da Rússia, aos 10 anos de idade. Quem a contou - ou leu - para mim foi o meu
pai, que era um grande contador de histórias. E aí vai esta velha história,
recontada conforme eu me lembro dela...
Os alemães
sempre foram grandes andarilhos e, desde tempos remotos, faziam longas viagens
a pé ou pegando carona em carroças, de vez em quando, conforme a sorte de cada
um, só para "conhecer o mundo" - mesmo sendo muito pobres. Saíam de
mochila nas costas e cajado na mão e, para adquirir experiência de vida,
aventuravam--se, nem eles mesmos sabiam para onde e até onde.
E foi assim
que um belo dia Hans, um pobre obreiro alemão, foi parar em Amsterdã,
importante cidade portuária da Holanda, muito distante da aldeia do nosso
andarilho.
Amsterdã
deixou o pobre Hans embasbacado. A cidade era grande, opulenta e ruidosa, casas
e mais casas, uma infinidade de embarcações de todos os tipos e uma multidão de
gente atarefada por toda a parte. Boquiaberto, o nosso deslumbrado alemão
reparou de repente numa casa de tamanho que ele não imaginara nem em sonho. Só
de chaminés aquele telhado tinha mais de dez, três andares, janelas faiscantes
e um porão enorme — um espanto só!
Então, com um
tímido cumprimento, Hans dirigiu-se ao primeiro transeunte e lhe perguntou:
— De quem é
esta casa, com tantas janelas cheias de tulipas, narcisos e rosas?
Mas, ao que
parece, aquele transeunte estava muito apressado, ou sabia tanto alemão quanto
Hans holandês, ou seja, nada. O fato é que ele respondeu apenas com uma única
palavra:
— Kanniferstan.
O simplório
alemão concluiu que aquele era o nome do proprietário do importante casarão e
pensou com os seus botões: “Deve ser um bocado rico esse senhor Kanniferstan...”.
E continuou o seu caminho pelas ruas da grande cidade.
Pouco depois,
ele chegou ao porto e ficou tonto ao ver tantos mastros, pareceu estar diante
de uma floresta. E logo o seu olhar se deteve em um enorme navio ancorado,
recém-chegado da Índia, com toda uma multidão se aglomerando ao lado da
majestosa embarcação, que estava sendo descarregada. Eram verdadeiras montanhas
de sacos, fardos, caixas e barris de mercadorias, cheios de café, açúcar,
pimenta, grãos, arroz, especiarias e muita coisa mais. De queixo caído, nosso
alemão olhava para tudo aquilo e ficou com vontade de saber a quem pertencia
tamanha fartura.
Então ele
perguntou a um vigoroso marujo, que carregava enorme fardo na cabeça, como se
chamava o senhor a quem o mar trouxera tantos tesouros de uma só vez.
De cenho
franzido, o marujo respondeu, de passagem:
— Kanniferstan
- e se foi com a sua carga.
— Outra vez! —
exclamou Hans em voz alta. — Ora quem diria! Mas que nababo é esse Kanniferstan!
Com tamanha fortuna nem é tão difícil construir um casarão daquele tamanho e
encher cem janelas com vasos dourados de tantas tulipas, narcisos e rosas!
E Hans
prosseguiu no seu caminho, pensativo. Assim, caminhando e pensando, ele foi
tomado de grande tristeza ao matutar quanta gente rica havia no mundo, enquanto
ele, Hans, era pobre como um rato de igreja. E como seria bom se ele, Hans, o
pobre Hans, fosse igual àquele Kanniferstan e como seria a sua vida, quando...
quando ele viu, de repente, um cortejo fúnebre passando na sua frente.
O Hans viu uma
parelha de cavalos, cobertos por mantas negras, puxando uma bela carreta com um
rico esquife, em passos vagarosos, como se soubessem que estavam levando o
defunto, no seu caixão, para a sepultura, para todo o sempre.
Seguindo o
féretro, a pé, marchavam lentamente parentes, amigos e conhecidos, em luto
solene e silencioso. Ao longe, ouvia-se o sino da igreja dobrar, solitário.
Hans foi
tomado de grande tristeza, como alma boa e humilda que era, à vista desse
melancólico espetáculo. Tirando o chapéu e murmurando uma prece, ele acompanhou
com os olhos o silencioso cortejo.
Depois,
aproximando-se de uma das últimas pessoas que seguiam o esquife, um senhor que
estava muito ocupado com um assunto importante - calcular quanto lucro ele
auferiria da venda da canela e da pimenta —, Hans puxou-o timidamente pela
manga e disse:
— Penso que o
falecido era seu bom amigo, já que o vejo tão pensativo. Com todo o respeito, posso
perguntar quem era ele?
— Kanniferstan
— foi a lacônica e impaciente resposta.
As lágrimas
jorraram dos olhos do honrado alemão, que sentiu o coração oprimido e pesado...
Mas, logo em seguida, ele o sentiu leve de novo. E, com um suspiro, o nosso
Hans disse:
— Pobre, pobre
Kanniferstan! De tamanha fartura e riqueza, o que lhe restou? Não será o mesmo
que a mim, mais cedo ou mais tarde, sobrará de toda a minha pobreza? Urna
simples mortalha e um estreito caixão!
Mergulhado
nesses pensamentos, Hans se arrastou atrás dos enlutados, como se ele próprio
fosse parente do morto.
Hans entrou na
igreja, junto com os outros. Lá ele ouviu contrito o sermão em holandês, do
qual não entendeu nada, mas escutou com profundo sentimento.
E depois,
quando o corpo de Kanniferstan foi entregue à terra, Hans chorou copiosamente e
por fim, de coração aliviado e alma lavada, deixou Amsterdã e seguiu a sua
jornada de andarilho.
Desde aquele
dia, sempre que a tristeza o visitava, e ele ficava deprimido ao ver a
felicidade das pessoas ricas, Hans se consolava, lembrando-se de Kanniferstan,
com sua casa luxuosa, seu grande navio... e sua estreita sepultura.
Mas o que o
bom Hans não sabia, e nunca ficou sabendo, é que o nome ou, melhor dizendo, a
palavra kanniferstan, na verdade "ik kan je niet verstaan", que ele
ouvira tantas vezes naquele dia em Amsterdã, significava em holandês "eu
não compreendo"!
O diabo e o granjeiro - Conto alemão
Um pobre
lavrador precisava construir a casa da sua pequena granja, mas não conseguia
realizar esse sonho. O que ganhava mal dava para alimentar os dois, ele e sua
mulher. Por mais economia que fizesse, não conseguia juntar o necessário para
começar a construção.
Um dia,
estando a caminhar pelo seu pedaço de chão, mergulhado em tristes pensamentos,
deu com um velho esquisito, que lhe disse, com voz desagradável:
‒ Para de te preocupar, homem. Eu
posso resolver o teu problema antes do primeiro canto do galo, amanhã cedo.
— Como assim? —
espantou-se o lavrador.
— Tu precisas
construir a casa da granja, certo? Pois eu me encarrego de construir e
entregar-te essa obra, antes do canto do galo, em troca de uma pequena promessa
tua.
— Que
promessa? Não tenho nada para te oferecer em troca de tal serviço.
— Não importa:
o que quero que me prometas é um bem que tu tens, mas ainda não sabes. É pegar
ou largar.
O pobre
granjeiro pensou com seus botões: "O que é que eu tenho a perder?".
E, sem hesitar mais, respondeu ao velho que aceitava o trato, fazendo a
promessa.
— Só que quero
ver a casa da granja construída amanhã, antes do canto do galo — observou ele,
ainda meio incrédulo.
Voltou
correndo para casa, para comunicar à esposa o bom negócio que acabara de
fechar.
A pobre mulher
ficou horrorizada:
— Tu és louco,
marido! Acabas de prometer ao velho, que só pode ser o próprio diabo, o nosso
primeiro filho, que vai nascer daqui a alguns meses!
O homem, que
não sabia da gravidez, pôs as mãos na cabeça, mas não havia mais nada a fazer:
o pacto estava selado.
Porém a
mulher, que não estava disposta a aceitá-lo, ficou pensando num jeito de
frustrar o plano do diabo. E, naquela noite, sem conseguir dormir, ficou o
tempo todo escutando, apavorada, o barulho que o diabo e seus auxiliares
infernais faziam ao construírem a tal obra com espantosa rapidez.
A noite ia
passando, aproximava-se a madrugada. Mas, pouco antes de o céu clarear, quando
faltavam só umas poucas telhas para a conclusão da obra, a atenta mulher do
granjeiro pulou da cama e, rápida e ágil, correu até o galinheiro, onde o galo
ainda não despertara.
Tomando
fôlego, imitou o canto do galo, com tal perfeição, que todos os galos da
vizinhança, junto com o seu próprio, lhe responderam com um coro sonoro de
cocoricós matinais, momentos antes do romper da aurora. Como um trato com o
diabo tem de ser estritamente observado, tanto pela vítima como por ele mesmo,
a obra em final de construção teve de ser parada naquele mesmo instante, por
quebra de contrato, “antes do primeiro canto do galo”.
E o diabo,
espumando de raiva por se ver assim ludibriado e espoliado, se mandou de volta
para o inferno, junto com os seus acólitos, para nunca mais voltar àquele
lugar.
A casa da
granja permaneceu construída, para alegria do granjeiro, faltando apenas
aquelas poucas telhas, que jamais puderam ser colocadas.
As três respostas – Conto inglês
Na Inglaterra,
daquele tempo, vivia na corte do rei João um importante prelado, o abade de
Canterbury, tão vaidoso que um dia chegou a se vangloriar de ser mais rico e de
ter um palácio mais belo do que o do próprio soberano.
Quando essa
notícia chegou aos seus ouvidos, o monarca ficou muito irritado e mandou
convocar o prelado à sua presença.
O abade
apressou-se a comparecer perante o rei, sem desconfiar da surpresa que o
aguardava. O rei João foi ríspido, dizendo que a gabolice do abade constituía crime
de lesa-majestade, punido com a pena de morte e o confisco dos bens do réu.
O abade tremeu
de medo, jurando ser inocente e implorando o perdão real. E tanto suplicou que
o rei João, fingindo compadecer-se dele, disse que o perdoaria, se ele
respondesse às três perguntas que lhe faria em seguida.
— A primeira
pergunta é a seguinte: assim como me vês, sentado no meu trono de ouro, com a
minha coroa na cabeça e o cetro na mão, dize-me quanto eu valho em dinheiro. A
segunda pergunta é: quanto tempo eu levaria a cavalo para fazer a volta ao
mundo? E a terceira é: o que eu estou pensando aqui e agora?
Assustado, o
abade de Canterbury pediu ao rei João que lhe concedesse três dias para pensar
nas respostas. O rei, fazendo-se de generoso e certo de que o prelado jamais
responderia às suas perguntas, concedeu-lhe esse prazo.
O abade saiu
apressado, consultou doutores, sábios e feiticeiros, mas ninguém soube
responder àquelas perguntas. Ao entardecer do terceiro dia, de volta ao seu
palácio, cruzou com o pastor do seu rebanho de ovelhas. Reparando no aspecto
abatido do amo, o pastor lhe perguntou qual a razão de tamanha tristeza. O
abade, num desabafo, contou-lhe sua infeliz e perigosa situação. E muito se
surpreendeu ao ouvir do pastor uma estranha proposta:
— Acho que sei
a solução para o seu o seu caso. Repare que nós dois temos a mesma altura e o
mesmo porte. Se confiar em mim, eu me apresentarei amanhã em seu lugar perante
o rei, disfarçado, em traje de monge. Se Deus quiser, acharei as respostas às
três perguntas.
Como não tinha
nada a perder, o abade concordou com o plano.
No dia
seguinte, o pastor, encoberto pelo capuz do hábito de monge, apresentou-se ao
rei João, à espera das três perguntas, que o monarca lhe fez em seguida, sem
reconhecê-lo.
— Então, abade
atrevido, responde-me sem hesitar: assim como me vês, sentado no meu trono de
ouro, com a minha coroa na cabeça e o cetro na mão, quanto eu valho em
dinheiro?
— A resposta —
disse o pastor disfarçado — é a seguinte: Nosso Salvador foi vendido por 30
moedas. Portanto, o vosso valor é 29 moedas, pois acho que Vossa Majestade concordará
que vale uma moeda a menos do que Nosso Senhor.
— Não pensei
que eu valesse tão pouco — sorriu o rei. - Mas dize-me agora em quanto tempo
posso cavalgar em volta do mundo.
— Vossa
Majestade — respondeu o falso abade — deve levantar-se ao nascer do dia e
cavalgar atrás do Sol até a manhã seguinte, quando o astro nascer outra vez. Assim, sem erro, terá dado a volta ao mundo em
vinte e quatro horas.
— Nunca pensei
— riu o rei — que a volta ao mundo
pudesse ser feita tão depressa. Mas agora me diga, abade, o que estou pensando
neste exato momento?
— Vossa
Majestade — respondeu o esperto pastor — pensa que está falando com o abade de
Canterbury. Mas a verdade é que não passo de um pobre pastor de ovelhas.
E, afastando
do rosto o capuz de monge, concluiu:
— Estou aqui
para pedir perdão para mim e para o meu amo, o abade.
Dessa vez, o
rei João riu às gargalhadas e disse:
— Por teres
alegrado o meu dia, eu te perdoo pelo atrevimento e mando te dar uma bolsa de
dinheiro como recompensa. Vai em paz e dize ao teu patrão que te agradeça porque,
graças a ti, eu o perdoo também. Mas ele que se guarde de novas gabolices!
O samurai e a cerejeira – Conto japonês
No distrito de
Iyo, no Japão, existe uma árvore antiquíssima. É chamada de "cerejeira do
décimo sexto dia" porque, nesse dia do primeiro mês do ano lunar, ela se
cobre de flores — e somente nesse dia. As cerejeiras costumam florir na
primavera, mas essa é diferente: floresce no inverno, porque dentro dela habita
o espírito de um ser humano.
Sobre ela
conta-se curiosa história. Há muitos e muitos séculos, a cerejeira crescia no
jardim de um samurai, um guerreiro, que a amava muito. Durante muitos anos, ele
se deliciou com a formosa e perfumada florada no décimo sexto dia do primeiro
mês de cada ano.
O samurai teve
vida longa. Viveu tanto tempo que viu morrer toda a sua família: pais, irmãos,
filhos, netos e até bisnetos. Ficou muito velho e muito só, sem ninguém a quem
dedicar afeto e carinho. Vira a cerejeira crescer e florescer desde criança. Os
pais e os avós dele já haviam brincado à sombra da árvore.
Na sua solidão
de ancião, todo o amor do samurai se voltou para aquela cerejeira já bem velha,
mas que ficava viçosa e florida sempre no mesmo dia, todos os anos, para
alegria e consolo de seu coração solitário.
Os anos foram
passando. Até que, num décimo sexto dia do primeiro mês de certo ano, a
cerejeira amanheceu nua e seca. O velho caiu em profunda tristeza. Não deixou
que arrancassem a árvore morta, na esperança de que no ano seguinte ela revivesse.
Mas a pobre cerejeira ficava cada vez mais seca.
O samurai
ficou tão abatido que os vizinhos se condoeram e deram-lhe de presente uma
cerejeira nova, a mais bonita que puderam encontrar. O velhinho agradeceu,
fingindo ficar satisfeito com o presente, mas no fundo da alma continuava roído
de tristeza. Sentia saudade da florada de inverno da árvore amada.
Dia e noite
ele pensava na cerejeira, inconsolável.
No ano
seguinte, quando chegou o décimo sexto dia do primeiro mês, teve uma ideia que
lhe pareceu feliz: lembrou-se de uma coisa na qual todos, naquela região,
acreditavam. Quando alguém desejava muito e os deuses permitiam, a pessoa podia
fazer uma permuta: trocar a sua própria vida pela de uma planta, de um animal
ou mesmo de um inseto!
Então, o velho
samurai saiu para o jardim e, ajoelhado junto à cerejeira seca e morta, falou
com ela, suplicando:
— Por favor,
minha cerejeira amada. Eu imploro. Tem pena de mim e atende ao meu humilde
pedido: floresce só mais uma vez, para que eu possa morrer em teu lugar!
Depois da
súplica, voltou para casa e lá pegou os seus mais alvos lençóis e seus mais
ricos tapetes, que estendeu ao pé da árvore seca. Solenemente, sentou-se no
tapete e, sem hesitar, fez o haraquiri, rasgando o próprio ventre com a sua
espada, conforme a tradição dos samurais. E morreu feliz, com um sorriso nos lábios.
No mesmo
instante, o espírito do velho saiu de seu corpo e entrou na árvore seca. A cerejeira
morta reviveu. Fresca e viçosa como antes, cobriu-se de flores lindas e
perfumadas.
Desde então,
com a neve ainda atapetando o chão, a antiquíssima cerejeira continua
florescendo no décimo sexto dia do primeiro mês de cada novo ano lunar,
vestindo-se de flores e enchendo o jardim de perfume beleza.
E, de todas as
partes, dos povoados mais distantes, vem gente nesse dia para ver a cerejeira
florir milagrosamente — e fazer toda sorte de pedidos ao espírito do velho
samurai que nela se abriga.