domingo, 11 de junho de 2017

Contos populares


KanniferstanConto alemão

Ouvi esta história faz muito tempo, quando eu era pequena, ainda antes de chegar ao Brasil, vinda da Rússia, aos 10 anos de idade. Quem a contou - ou leu - para mim foi o meu pai, que era um grande contador de histórias. E aí vai esta velha história, recontada conforme eu me lembro dela...
Os alemães sempre foram grandes andarilhos e, desde tempos remotos, faziam longas viagens a pé ou pegando carona em carroças, de vez em quando, conforme a sorte de cada um, só para "conhecer o mundo" - mesmo sendo muito pobres. Saíam de mochila nas costas e cajado na mão e, para adquirir experiência de vida, aventuravam--se, nem eles mesmos sabiam para onde e até onde.
E foi assim que um belo dia Hans, um pobre obreiro alemão, foi parar em Amsterdã, importante cidade portuária da Holanda, muito distante da aldeia do nosso andarilho.
Amsterdã deixou o pobre Hans embasbacado. A cidade era grande, opulenta e ruidosa, casas e mais casas, uma infinidade de embarcações de todos os tipos e uma multidão de gente atarefada por toda a parte. Boquiaberto, o nosso deslumbrado alemão reparou de repente numa casa de tamanho que ele não imaginara nem em sonho. Só de chaminés aquele telhado tinha mais de dez, três andares, janelas faiscantes e um porão enorme — um espanto só!
Então, com um tímido cumprimento, Hans dirigiu-se ao primeiro transeunte e lhe perguntou:
— De quem é esta casa, com tantas janelas cheias de tulipas, narcisos e rosas?
Mas, ao que parece, aquele transeunte estava muito apressado, ou sabia tanto alemão quanto Hans holandês, ou seja, nada. O fato é que ele respondeu apenas com uma única palavra:
— Kanniferstan.
O simplório alemão concluiu que aquele era o nome do proprietário do importante casarão e pensou com os seus botões: “Deve ser um bocado rico esse senhor Kanniferstan...”. E continuou o seu caminho pelas ruas da grande cidade.
Pouco depois, ele chegou ao porto e ficou tonto ao ver tantos mastros, pareceu estar diante de uma floresta. E logo o seu olhar se deteve em um enorme navio ancorado, recém-chegado da Índia, com toda uma multidão se aglomerando ao lado da majestosa embarcação, que estava sendo descarregada. Eram verdadeiras montanhas de sacos, fardos, caixas e barris de mercadorias, cheios de café, açúcar, pimenta, grãos, arroz, especiarias e muita coisa mais. De queixo caído, nosso alemão olhava para tudo aquilo e ficou com vontade de saber a quem pertencia tamanha fartura.
Então ele perguntou a um vigoroso marujo, que carregava enorme fardo na cabeça, como se chamava o senhor a quem o mar trouxera tantos tesouros de uma só vez.
De cenho franzido, o marujo respondeu, de passagem:
— Kanniferstan - e se foi com a sua carga.
— Outra vez! — exclamou Hans em voz alta. — Ora quem diria! Mas que nababo é esse Kanniferstan! Com tamanha fortuna nem é tão difícil construir um casarão daquele tamanho e encher cem janelas com vasos dourados de tantas tulipas, narcisos e rosas!
E Hans prosseguiu no seu caminho, pensativo. Assim, caminhando e pensando, ele foi tomado de grande tristeza ao matutar quanta gente rica havia no mundo, enquanto ele, Hans, era pobre como um rato de igreja. E como seria bom se ele, Hans, o pobre Hans, fosse igual àquele Kanniferstan e como seria a sua vida, quando... quando ele viu, de repente, um cortejo fúnebre passando na sua frente.
O Hans viu uma parelha de cavalos, cobertos por mantas negras, puxando uma bela carreta com um rico esquife, em passos vagarosos, como se soubessem que estavam levando o defunto, no seu caixão, para a sepultura, para todo o sempre.
Seguindo o féretro, a pé, marchavam lentamente parentes, amigos e conhecidos, em luto solene e silencioso. Ao longe, ouvia-se o sino da igreja dobrar, solitário.
Hans foi tomado de grande tristeza, como alma boa e humilda que era, à vista desse melancólico espetáculo. Tirando o chapéu e murmurando uma prece, ele acompanhou com os olhos o silencioso cortejo.
Depois, aproximando-se de uma das últimas pessoas que seguiam o esquife, um senhor que estava muito ocupado com um assunto importante - calcular quanto lucro ele auferiria da venda da canela e da pimenta —, Hans puxou-o timidamente pela manga e disse:
— Penso que o falecido era seu bom amigo, já que o vejo tão pensativo. Com todo o respeito, posso perguntar quem era ele?
— Kanniferstan — foi a lacônica e impaciente resposta.
As lágrimas jorraram dos olhos do honrado alemão, que sentiu o coração oprimido e pesado... Mas, logo em seguida, ele o sentiu leve de novo. E, com um suspiro, o nosso Hans disse:
— Pobre, pobre Kanniferstan! De tamanha fartura e riqueza, o que lhe restou? Não será o mesmo que a mim, mais cedo ou mais tarde, sobrará de toda a minha pobreza? Urna simples mortalha e um estreito caixão!
Mergulhado nesses pensamentos, Hans se arrastou atrás dos enlutados, como se ele próprio fosse parente do morto.
Hans entrou na igreja, junto com os outros. Lá ele ouviu contrito o sermão em holandês, do qual não entendeu nada, mas escutou com profundo sentimento.
E depois, quando o corpo de Kanniferstan foi entregue à terra, Hans chorou copiosamente e por fim, de coração aliviado e alma lavada, deixou Amsterdã e seguiu a sua jornada de andarilho.
Desde aquele dia, sempre que a tristeza o visitava, e ele ficava deprimido ao ver a felicidade das pessoas ricas, Hans se consolava, lembrando-se de Kanniferstan, com sua casa luxuosa, seu grande navio... e sua estreita sepultura.
Mas o que o bom Hans não sabia, e nunca ficou sabendo, é que o nome ou, melhor dizendo, a palavra kanniferstan, na verdade "ik kan je niet verstaan", que ele ouvira tantas vezes naquele dia em Amsterdã, significava em holandês "eu não compreendo"!



O diabo e o granjeiro - Conto alemão

Um pobre lavrador precisava construir a casa da sua pequena granja, mas não conseguia realizar esse sonho. O que ganhava mal dava para alimentar os dois, ele e sua mulher. Por mais economia que fizesse, não conseguia juntar o necessário para começar a construção.
Um dia, estando a caminhar pelo seu pedaço de chão, mergulhado em tristes pensamentos, deu com um velho esquisito, que lhe disse, com voz desagradável:
‒ Para de te preocupar, homem. Eu posso resolver o teu problema antes do primeiro canto do galo, amanhã cedo.
— Como assim? — espantou-se o lavrador.
— Tu precisas construir a casa da granja, certo? Pois eu me encarrego de construir e entregar-te essa obra, antes do canto do galo, em troca de uma pequena promessa tua.
— Que promessa? Não tenho nada para te oferecer em troca de tal serviço.
— Não importa: o que quero que me prometas é um bem que tu tens, mas ainda não sabes. É pegar ou largar.
O pobre granjeiro pensou com seus botões: "O que é que eu tenho a perder?". E, sem hesitar mais, respondeu ao velho que aceitava o trato, fazendo a promessa.
— Só que quero ver a casa da granja construída amanhã, antes do canto do galo — observou ele, ainda meio incrédulo.
Voltou correndo para casa, para comunicar à esposa o bom negócio que acabara de fechar.
A pobre mulher ficou horrorizada:
— Tu és louco, marido! Acabas de prometer ao velho, que só pode ser o próprio diabo, o nosso primeiro filho, que vai nascer daqui a alguns meses!
O homem, que não sabia da gravidez, pôs as mãos na cabeça, mas não havia mais nada a fazer: o pacto estava selado.
Porém a mulher, que não estava disposta a aceitá-lo, ficou pensando num jeito de frustrar o plano do diabo. E, naquela noite, sem conseguir dormir, ficou o tempo todo escutando, apavorada, o barulho que o diabo e seus auxiliares infernais faziam ao construírem a tal obra com espantosa rapidez.
A noite ia passando, aproximava-se a madrugada. Mas, pouco antes de o céu clarear, quando faltavam só umas poucas telhas para a conclusão da obra, a atenta mulher do granjeiro pulou da cama e, rápida e ágil, correu até o galinheiro, onde o galo ainda não despertara.
Tomando fôlego, imitou o canto do galo, com tal perfeição, que todos os galos da vizinhança, junto com o seu próprio, lhe responderam com um coro sonoro de cocoricós matinais, momentos antes do romper da aurora. Como um trato com o diabo tem de ser estritamente observado, tanto pela vítima como por ele mesmo, a obra em final de construção teve de ser parada naquele mesmo instante, por quebra de contrato, “antes do primeiro canto do galo”.
E o diabo, espumando de raiva por se ver assim ludibriado e espoliado, se mandou de volta para o inferno, junto com os seus acólitos, para nunca mais voltar àquele lugar.
A casa da granja permaneceu construída, para alegria do granjeiro, faltando apenas aquelas poucas telhas, que jamais puderam ser colocadas.


As três respostasConto inglês

Na Inglaterra, daquele tempo, vivia na corte do rei João um importante prelado, o abade de Canterbury, tão vaidoso que um dia chegou a se vangloriar de ser mais rico e de ter um palácio mais belo do que o do próprio soberano.
Quando essa notícia chegou aos seus ouvidos, o monarca ficou muito irritado e mandou convocar o prelado à sua presença.
O abade apressou-se a comparecer perante o rei, sem desconfiar da surpresa que o aguardava. O rei João foi ríspido, dizendo que a gabolice do abade constituía crime de lesa-majestade, punido com a pena de morte e o confisco dos bens do réu.
O abade tremeu de medo, jurando ser inocente e implorando o perdão real. E tanto suplicou que o rei João, fingindo compadecer-se dele, disse que o perdoaria, se ele respondesse às três perguntas que lhe faria em seguida.
— A primeira pergunta é a seguinte: assim como me vês, sentado no meu trono de ouro, com a minha coroa na cabeça e o cetro na mão, dize-me quanto eu valho em dinheiro. A segunda pergunta é: quanto tempo eu levaria a cavalo para fazer a volta ao mundo? E a terceira é: o que eu estou pensando aqui e agora?
Assustado, o abade de Canterbury pediu ao rei João que lhe concedesse três dias para pensar nas respostas. O rei, fazendo-se de generoso e certo de que o prelado jamais responderia às suas perguntas, concedeu-lhe esse prazo.
O abade saiu apressado, consultou doutores, sábios e feiticeiros, mas ninguém soube responder àquelas perguntas. Ao entardecer do terceiro dia, de volta ao seu palácio, cruzou com o pastor do seu rebanho de ovelhas. Reparando no aspecto abatido do amo, o pastor lhe perguntou qual a razão de tamanha tristeza. O abade, num desabafo, contou-lhe sua infeliz e perigosa situação. E muito se surpreendeu ao ouvir do pastor uma estranha proposta:
— Acho que sei a solução para o seu o seu caso. Repare que nós dois temos a mesma altura e o mesmo porte. Se confiar em mim, eu me apresentarei amanhã em seu lugar perante o rei, disfarçado, em traje de monge. Se Deus quiser, acharei as respostas às três perguntas.
Como não tinha nada a perder, o abade concordou com o plano.
No dia seguinte, o pastor, encoberto pelo capuz do hábito de monge, apresentou-se ao rei João, à espera das três perguntas, que o monarca lhe fez em seguida, sem reconhecê-lo.
— Então, abade atrevido, responde-me sem hesitar: assim como me vês, sentado no meu trono de ouro, com a minha coroa na cabeça e o cetro na mão, quanto eu valho em dinheiro?
— A resposta — disse o pastor disfarçado — é a seguinte: Nosso Salvador foi vendido por 30 moedas. Portanto, o vosso valor é 29 moedas, pois acho que Vossa Majestade concordará que vale uma moeda a menos do que Nosso Senhor.
— Não pensei que eu valesse tão pouco — sorriu o rei. - Mas dize-me agora em quanto tempo posso cavalgar em volta do mundo.
— Vossa Majestade — respondeu o falso abade — deve levantar-se ao nascer do dia e cavalgar atrás do Sol até a manhã seguinte, quando o astro nascer outra vez.  Assim, sem erro, terá dado a volta ao mundo em vinte e quatro horas.
— Nunca pensei — riu o rei —  que a volta ao mundo pudesse ser feita tão depressa. Mas agora me diga, abade, o que estou pensando neste exato momento?
— Vossa Majestade — respondeu o esperto pastor — pensa que está falando com o abade de Canterbury. Mas a verdade é que não passo de um pobre pastor de ovelhas.
E, afastando do rosto o capuz de monge, concluiu:
— Estou aqui para pedir perdão para mim e para o meu amo, o abade.
Dessa vez, o rei João riu às gargalhadas e disse:

— Por teres alegrado o meu dia, eu te perdoo pelo atrevimento e mando te dar uma bolsa de dinheiro como recompensa. Vai em paz e dize ao teu patrão que te agradeça porque, graças a ti, eu o perdoo também. Mas ele que se guarde de novas gabolices!


O samurai e a cerejeiraConto japonês

No distrito de Iyo, no Japão, existe uma árvore antiquíssima. É chamada de "cerejeira do décimo sexto dia" porque, nesse dia do primeiro mês do ano lunar, ela se cobre de flores — e somente nesse dia. As cerejeiras costumam florir na primavera, mas essa é diferente: floresce no inverno, porque dentro dela habita o espírito de um ser humano.
Sobre ela conta-se curiosa história. Há muitos e muitos séculos, a cerejeira crescia no jardim de um samurai, um guerreiro, que a amava muito. Durante muitos anos, ele se deliciou com a formosa e perfumada florada no décimo sexto dia do primeiro mês de cada ano.
O samurai teve vida longa. Viveu tanto tempo que viu morrer toda a sua família: pais, irmãos, filhos, netos e até bisnetos. Ficou muito velho e muito só, sem ninguém a quem dedicar afeto e carinho. Vira a cerejeira crescer e florescer desde criança. Os pais e os avós dele já haviam brincado à sombra da árvore.
Na sua solidão de ancião, todo o amor do samurai se voltou para aquela cerejeira já bem velha, mas que ficava viçosa e florida sempre no mesmo dia, todos os anos, para alegria e consolo de seu coração solitário.
Os anos foram passando. Até que, num décimo sexto dia do primeiro mês de certo ano, a cerejeira amanheceu nua e seca. O velho caiu em profunda tristeza. Não deixou que arrancassem a árvore morta, na esperança de que no ano seguinte ela revivesse. Mas a pobre cerejeira ficava cada vez mais seca.
O samurai ficou tão abatido que os vizinhos se condoeram e deram-lhe de presente uma cerejeira nova, a mais bonita que puderam encontrar. O velhinho agradeceu, fingindo ficar satisfeito com o presente, mas no fundo da alma continuava roído de tristeza. Sentia saudade da florada de inverno da árvore amada.
Dia e noite ele pensava na cerejeira, inconsolável.
No ano seguinte, quando chegou o décimo sexto dia do primeiro mês, teve uma ideia que lhe pareceu feliz: lembrou-se de uma coisa na qual todos, naquela região, acreditavam. Quando alguém desejava muito e os deuses permitiam, a pessoa podia fazer uma permuta: trocar a sua própria vida pela de uma planta, de um animal ou mesmo de um inseto!
Então, o velho samurai saiu para o jardim e, ajoelhado junto à cerejeira seca e morta, falou com ela, suplicando:
— Por favor, minha cerejeira amada. Eu imploro. Tem pena de mim e atende ao meu humilde pedido: floresce só mais uma vez, para que eu possa morrer em teu lugar!
Depois da súplica, voltou para casa e lá pegou os seus mais alvos lençóis e seus mais ricos tapetes, que estendeu ao pé da árvore seca. Solenemente, sentou-se no tapete e, sem hesitar, fez o haraquiri, rasgando o próprio ventre com a sua espada, conforme a tradição dos samurais. E morreu feliz, com um sorriso nos lábios.
No mesmo instante, o espírito do velho saiu de seu corpo e entrou na árvore seca. A cerejeira morta reviveu. Fresca e viçosa como antes, cobriu-se de flores lindas e perfumadas.
Desde então, com a neve ainda atapetando o chão, a antiquíssima cerejeira continua florescendo no décimo sexto dia do primeiro mês de cada novo ano lunar, vestindo-se de flores e enchendo o jardim de perfume beleza.

E, de todas as partes, dos povoados mais distantes, vem gente nesse dia para ver a cerejeira florir milagrosamente — e fazer toda sorte de pedidos ao espírito do velho samurai que nela se abriga.