sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O caso do espelho

Ricardo Azevedo

Era um homem que não sabia quase nada.

Morava longe, numa casinha de sapé esquecida nos cafundós da mata.

Um dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho pendurado do lado de fora. O homem abriu a boca, apertou os olhos. Depois gritou, com o espelho nas mãos:

– Mas o que é que o retrato de meu pai está fazendo aqui?

– Isso é um espelho – explicou o dono da loja.

– Não sei se é espelho ou se não é, só sei que é o retrato do meu pai.

Os olhos do homem ficaram molhados.

– O senhor... conheceu meu pai? – perguntou ele ao comerciante.

O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era só um espelho comum, desses de vidro e moldura de madeira.

– É não! Respondeu o outro. – Isso é o retrato do meu pai. É ele, sim! Olha o rosto dele. Olha a testa. E o cabelo? E o nariz? E aquele sorriso meio sem jeito?

O homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o espelho, baratinho.

Naquele dia, o homem que não sabia quase nada entrou em casa todo contente. Guardou, cuidadosamente, o espelho embrulhado na gaveta da penteadeira.

A mulher ficou só olhando.

No outro dia, esperou o marido sair para trabalhar e correu para o quarto. Abrindo a gaveta da penteadeira, desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo atrás. Fez o sinal da cruz tapando a boca com as mãos. Em seguida, guardou o espelho na gaveta e saiu chorando.

– Ah, meu Deus! – gritava ela desnorteada. – É o retrato de outra mulher! Meu marido não gosta mais de mim! A outra é linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira solta! Que pele macia! A diaba é mil vezes mais bonita e mais moça do que eu!

– Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa toda desarrumada. A mulher, chorando sentada no chão, não tinha feito nem a comida.

– Que foi isso, mulher?

– Ah, seu traidor de uma figa! Quem é aquela jararaca lá no retrato?

– Que retrato? – perguntou o marido, surpreso.

– Aquele mesmo que você escondeu na gaveta da penteadeira!

O homem não estava entendendo nada.

– Mas aquilo é o retrato do meu pai!

Indignada, a mulher colocou as mãos no peito:

– Cachorro sem-vergonha, miserável! Pensa que eu não sei a diferença entre um velho lazarento e uma jabiraca safada e horrorosa?

A discussão fervia feito água na chaleira.

– Velho lazarento coisa nenhuma! – gritou o homem, ofendido.

A mãe da moça morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava acontecendo. Encontrou a filha chorando feito criança que se perdeu e não consegue mais voltar pra casa.

– Que é isso, menina?

– Aquele cafajeste arranjou outra!

– Ela ficou maluca – berrou o homem, de cara amarrada.

– Ontem eu o vi escondendo um pacote na gaveta lá do quarto, mãe! Hoje, depois que ele saiu, fui ver o que era. Tá lá! É o retrato de outra mulher!

A boa senhora resolveu, ela mesma, verificar o tal retrato.

Entrando no quarto, abriu a gaveta, desembrulhou o pacote e espiou. Arregalou os olhos. Olhou de novo. Soltou uma sonora gargalhada.

– Só se for o retrato da bisavó dele! A tal fulana é a coisa mais enrugada, feia, velha cacarenta, murcha, arruinada, desengonçada, capenga, careca, caduca, torta e desdentada que eu já vi até hoje!

E completou feliz, abraçando a filha:

– Fica tranquila. A bruaca do retrato já está com os dois pés na cova!

Conto popular recontado por Ricardo Azevedo

Uma noite no paraíso
Sylvia Manzano

Certa vez, dois amigos inseparáveis fizeram o seguinte juramento: aquele que casasse primeiro chamaria o outro para padrinho, mesmo que esse outro estivesse no fim do mundo.Pois bem: um dos amigos morre e o outro, que estava noivo, não sabendo o que fazer, vai pedir conselhos a seu confessor. O pároco assegura que a palavra deve ser mantida. Então o noivo vai até o túmulo do amigo convidá-lo para o casamento.

O morto aceita o convite de muito bom grado. No dia da cerimônia, não diz uma palavra sobre o quevira no outro mundo. No final do banquete ele fala:

– Amigo, como lhe fiz este favor, você agora deve me acompanhar um pouquinho até minha morada.

O recém-casado, não resistindo à curiosidade, pergunta como era a vida do outro lado.

O morto, fazendo um pouco de suspense, responde dessa forma:

– Se quiser saber, venha também ao paraíso. O outro concorda. O túmulo se abre e o vivo segue o morto. A primeira coisa que vê é um lindo palácio de cristal, onde os anjos tocavam para os beatos dançarem e São Pedro, muito feliz, dedilhava seu contrabaixo. Mais adiante, o amigo lhe apresenta nova maravilha: um jardim onde as árvores, em vez de folhas, tinham pássaros de todas as cores, que cantavam.

– Vamos em frente – diz o morto ao amigo, que fica cada vez mais deslumbrado. – Agora vou levá-lo para ver uma estrela.

O recém-casado percebe que não se cansaria nunca de admirar as estrelas, os rios, que em vez de água eram de vinho, e a terra, que era de queijo. De repente o noivo cai em si, lembra-se da noiva que ficara a esperá-lo e pede:

– Compadre, preciso voltar para casa, minha esposa deve estar preocupada.

– Como preferir.

Assim dizendo, o morto o acompanha até o túmulo, sumindo logo a seguir. Ao sair do túmulo, o vivo fica assombrado com o que vê ao redor: no lugar daquelas casinhas de pedra meio improvisadas há palácios, bondes, automóveis; as pessoas todas vestidas de modo diferente. Para se certificar, pergunta o nome da cidade a um velhinho que por ali passava.

– Sim, é esse o nome desta cidade.

No entanto, ao chegar à igreja é atendido por um bispo muito importante que, consultando os arquivos existentes ali, descobre que trezentos anos atrás um noivo havia acompanhado o padrinho ao túmulo e não tinha voltado nunca mais.

Transcrito de Nova Escola, São Paulo, v.9, n.75, p.30-1, maio 1994.
A procissão dos mortos
Cecília Pereira de Souza

Aqui em Jaraguá, no largo do Rosário, morava u’a mulher. Ela ficava sempre na janela para explorar a vida dos outros, para falar da vida alheia. Essa mulher só vivia falando, olhando, murmurando. Falava de um, de outro, de moça, de tudo.


Entardecia e ela continuava na janela. Chegava a noite, todo o mundo ia dormir, ela continuava lá, até a meia-noite, explorando o tempo.


Um dia, dizem, quando ela estava na janela, passou bem em frente uma procissão. Era uma procissão muito grande. Ela ficou olhando um, olhando outro, mas não reconheceu ninguém.


Quando, então, saiu dessa procissão u’a moça, chegou perto de sua janela e disse:


– Olha, dona, a senhora toma essas velas aqui. Eu quero que a senhora guarde elas pra mim até amanhã. Eu quero que a senhora me entregue elas amanhã, nessa mesma hora.


Ela recebeu as velas, mas ficou receosa, porque não estava reconhecendo ninguém daquela procissão.


Depois que a procissão acabou, foi olhar as velas e viu que aquilo era canela de defunto.


Era osso da canela de defunto.


Ela ficou muito nervosa e não conseguiu dormir a noite inteira, pensando naquilo, imaginando que tinha de devolver aqueles ossos.


Na noite seguinte, ficou lá na janela com as velas na mão. Quando veio a procissão, a moça que tinha entregado as velas aproximou-se dela e falou:


– Olha, escuta aqui. Isso aqui é uma procissão dos mortos. Essas velas são ossos de quem já morreu. Você não fique na janela mais, explorando a vida dos outros não, porque isso é muito feio, é muito ruim, é até pecado.



Transcrito de Ione M. O. Valadares (org), História popular de Jaraguá. Goiânia: CECUP/UFG, 1983. p.37.

O diabo e o granjeiro

Lenda alemã contada por Tatiana Belinki

Um pobre lavrador precisava construir a casa de sua pequena granja, mas não conseguia realizar esse sonho, pois o que ganhava mal dava para alimentá-lo, junto com sua mulher. Por mais economia que fizesse, não conseguia juntar o necessário para começar a construção.

Um dia, estando a caminhar pelo seu pedaço de chão, mergulhado em triste pensamento, deu com um velho esquisito que lhe disse com voz desagradável:

– Pára de preocupar-te, homem. Eu posso resolver o teu problema antes do primeiro canto do galo, amanhã cedo.

– Como assim? – espantou-se o lavrador.

– Tu precisas construir a casa da granja, certo?

Pois eu me encarrego de construir e entregar-te essa obra, antes do canto do galo, em troca de uma pequena promessa tua.

– Que promessa? Não tenho nada para te oferecer em troca de tal serviço.

– Não importa: o que quero que me prometas é um bem que tu tens mas ainda não sabes. É topar ou largar.

O pobre granjeiro pensou com seus botões o que é que eu tenho a perder? e, sem hesitar mais, respondeu ao velho que aceitava o trato e fez uma promessa.

– Só que quero ver a casa da granja construída, amanhã, antes do canto do galo – observou, ainda meio incrédulo.

E voltou correndo para casa, para comunicar à esposa o bom negócio que acabara de fechar.

A pobre mulher ficou horrorizada:

– Tu és um louco, marido! Acabas de prometer àquele velho, que só pode ser o próprio diabo, o nosso primeiro filho, que vai nascer daqui a alguns meses!

O homem, que não sabia da gravidez, pôs as mãos na cabeça, mas não havia mais nada a fazer: o pacto estava selado. Porém, a mulher, que não estava disposta a aceitá-lo, ficou pensando num jeito de frustrar o plano do diabo. E naquela noite, sem conseguir dormir, ficou o tempo todo escutando apavorada o barulho que o demônio e seus auxiliares infernais faziam, ao construírem a tal obra, com espantosa rapidez.

A noite ia passando, aproximava-se a madrugada. Mas, pouco antes de o ceu clarear, quando faltavam só umas poucas telhas para a conclusão da obra, a atenta mulher do granjeiro pulou da cama e, rápida e ágil, correu até o galinheiro, onde o galo ainda não despertara. Tomando fôlego, imitou o canto do galo, com tal perfeição que todos os galos da vizinhança, junto com o seu próprio, lhe responderam com um coro sonoro de cocoricós matinais, momentos antes do romper da aurora.

Como um trato com o diabo tem de ser estritamente observado, tanto pela vítima como por ele mesmo, a obra em final de construção teve de ser parada naquele mesmo instante, por quebra de contrato antes do primeiro canto do galo.

E o diabo, espumando de raiva por se ver assim ludibriado e espoliado, se mandou de volta para o inferno, junto com seus acólitos, para nunca mais voltar àquele lugar.

Mas a casa da granja permaneceu construída, para alegria do granjeiro, faltando apenas umas poucas telhas que jamais puderam ser colocadas.

Transcrito de Nova Escola, São Paulo, v.10, n.84, p.30-1, maio 1995

sábado, 21 de novembro de 2009

Por que a ida é sempre mais demorada que a volta?


Essa sensação acontece com todo mundo que viaja – desde que tenham sido feitos trajetos idênticos, na mesma velocidade, em sentidos opostos. Isso porque o nosso cronômetro interno não funciona com perfeita regularidade e muitas vezes engana a noção de tempo. As estruturas neurais que controlam a percepção temporal estão localizadas na mesma área do cérebro que comanda a nossa concentração.


Isso significa que, se a maior parte dessa área estiver voltada a prestar atenção no caminho, nas placas e na paisagem, não conseguimos nos concentrar no controle de tempo. E aí não saberemos quanto tempo, de fato, a viagem levou. Na ida, a descoberta de novos lugares influi na percepção de distância, e achamos que estamos demorando mais. Nossa preocupação é: “Quando vamos chegar?” Na volta, com o caminho já conhecido, a concentração se dispersa e a percepção de tempo é alterada para menos, dando a impressão que o trajeto passou mais depressa.


Rafael Tonon

Fonte: Revista Superinteressante - Edição 241 - Julho de 2007, pág. 50.

O texto acima permite concluir que a sensação de que a ida é sempre mais demorada
que a volta, se deve:

a) À distância existente entre o ponto de saída e o ponto de chegada.
b) Ao tempo gasto no trajeto.
c) À concentração que não se situa na mesma área cerebral da percepção de tempo.
d) Ao funcionamento irregular do “cronômetro interno” dos seres humanos.