quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O dia em que os jacarés invadiram Nova Iorque

Deu no jornal: experiências genéticas produziram minúsculos jacarés que foram vendidos aos milhares em Nova Iorque como brinquedo. Mas eram ferozes como seus ancestrais e os pais, receosos de que os filhos fossem mordidos, despejaram os jacarezinhos nos vasos sanitários e puxaram a descarga. Foi um erro fatal: centenas de jacarés sobreviveram e fizeram dos esgotos da cidade seu habitat. E lá, durante anos, se reproduziram. E cada geração – sabe-se lá os insondáveis mistérios da genética – aumentava de tamanho, acabando por produzir espécies muito maiores que os crocodilos do Nilo. Quando as autoridades deram pela coisa era tarde. Pelas saídas do metrô, pelas galerias de esgotos, pelo rio Hudson, milhões de jacarés gigantescos ganharam as ruas num ataque de surpresa e comeram a maior parte da população. Mais espantoso ainda: os jacarés assimilavam a personalidade daqueles que devoravam. De modo que a estrutura da cidade não se alterou muito, só que em vez de seres humanos eram jacarés que dominavam a cidade: serviços públicos, transporte, comunicação, tudo. A estátua da Liberdade foi substituída por um jacaré com um archote. Nem todos os habitantes foram comidos. Os jacarés que haviam comido os cientistas especializados em genética começaram a fazer experiências com suas cobaias humanas. Até que conseguiram reproduzir em laboratório homenzinhos com 20 centímetros de altura, que foram vendidos como brinquedos para os filhotes de jacarés. Mas os minúsculos seres não haviam perdido a ferocidade de seus ancestrais e começaram a hostilizar seus donos com lanças improvisadas. Os jacarés, com receio de que seus filhos se machucassem, pegaram os homenzinhos e os despejaram nos vasos sanitários. E puxaram a descarga. Foi um erro fatal para os jacarés.

Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe (Jaguar)

Terminada a guerra de Troia, que durou dez anos, Odisseu e seus companheiros navegam em direção à ilha de Ítaca. No mar, a esquadra de doze navios segue seu caminho. O trecho a seguir mostra a chegada deles a uma ilha muito estranha chamada Eólia, cercada por uma muralha de bronze

Eólia e Lestrigônia

No início, era só um lampejo ofuscante no horizonte, um clarão brilhante demais para os olhos. Mas logo eles começaram a perceber suas formas.

- Terra! – gritou o vigia.

- Não, só pode ser um navio!

- Uma ilha.

- Uma cidade!

Eólia era todas essas coisas. Erguia-se do mar como uma grande bacia de bronze revirada – flutuando, balouçando, toda circundada de penhascos de bronze tão altos quanto as muralhas de Troia. Somente uma linha branca de sal marinho ressecado manchava suas encostas reluzentes e polidas. Não havia nenhuma escada, degrau ou andaime. À medida que costeavam a ilha, eles puderam ver seus próprios rostos – uma estranha visão depois de dez anos vividos em tendas de batalha. Enquanto alisavam a barba e os cabelos, Odisseu levou à boca as mãos em concha e saudou o povo de Eólia.

Bem ao seu lado, foi baixada uma cesta de metal, com a forma de um ninho de andorinhão, pendurada numa corrente de bronze. Um braço acenava da beira do alto paredão de bronze. Sem sequer um momento de hesitação, Odisseu pulou dentro da cesta.

- Ao primeiro sinal de problema, zarpem depressa e se afastem. Polites ficará no comando se eu não regressar.

Enquanto ele falava, a cesta foi puxada de volta.

Quando chegou ao topo, duas mãos o ajudaram a sair da cesta. Eram mãos macias, pesadas de joias.

- Bem-vindo! Bem-vindo a Eólia, forasteiro. Venha beber comigo e com minha família. Devo mandar buscar seus homens ou enviar-lhes comida e bebida lá embaixo? As regras da hospitalidade ordenam que eu lhe dê tudo de que necessita.

- Senhor, sua gentileza já é uma prova disso – disse Odisseu, que se apresentou, bem modestamente.

- Odisseu! Mas tenho ouvido falar tanto sobre você! Cada navio que passa traz alguma novidade de Troia e seus heróis, e o seu nome é sempre mencionado. Mas a guerra acabou. O que está fazendo tão longe de seu reino de três ilhas?

O rei de Eólia estava ávido por notícias: ele as engolia como se fossem alimento e bebida, e Odisseu logo entendeu por quê.

Na sala de jantar, todo o povo de Eólia estava reunido: a mulher do rei, seus seis filhos, seis filhas e um punhado de servos. Como peças num tabuleiro de xadrez, estavam sentados frente a frente, sobre o brilhante chão ladrilhado, enquanto uma música tilintante ressoava acima de suas cabeças, vindas de fileiras de conchas marinhas que chocalhavam ao vento.

Odisseu mandou dizer a seus homens que todos estavam em segurança. Mas percebendo o número reduzido de cadeiras e a única mesa de jantar, insistiu para que permanecessem nos barcos e comessem e bebessem todas as boas coisas que o rei Éolo tinha lhes enviado. E como jantaram! Por toda a tarde e toda a noite eles comeram, até que os onze barcos negros se acomodaram na água e os marinheiros adormeceram sobre seus remos.

Odisseia, Homero. Ed. Ática, col. O tesouro dos clássicos juvenil, págs. 35-38.



Um cavaleiro andante que vivia num mundo de sonhos e seu fiel escudeiro resolveram, no século 17, caminhar pela Espanha à procura de aventuras. Essa história, a princípio simples, elevou seu criador ao posto de um dos maiores escritores da literatura mundial. Estamos falando do espanhol Miguel de Cervantes que, em 1605, escreveu o livro El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha (O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha)

Naquela época, os livros de cavalaria eram muito populares. Narravam histórias fantásticas, com personagens nobres, puros e que lutavam pelo amor, pela paz e pela justiça. Miguel de Cervantes resolveu inovar e criou um personagem que gostava demais de ler esses livros. Gostava tanto que enlouqueceu, a ponto de querer imitar os seus heróis. Assim nasceu Dom Quixote.

O texto que segue, de autoria do escritor gaúcho Moacyr Scliar, reconta essa história de um jeito diferente...

Uma história de Dom Quixote

Quando se fala num quixote, as pessoas logo pensam num desastrado, num sujeito que não consegue fazer nada direito; que tem boas ideias, mas sempre quebra a cara. E até repetem aquela história que o escritor espanhol Cervantes contou sobre Dom Quixote.

Ele era um daqueles cavaleiros andantes que usavam armadura, lança e escudo; percorria as planícies da Espanha num cavalo muito magro e feio, chamado Rocinante, procurando inimigos a quem pudesse desafiar em nome da moça que amava, e que ele chamava de Dulcineia. Pois um dia este Dom Quixote avistou ao longe uns moinhos de vento. Naquela época, vocês sabem, o trigo era moído desta maneira: havia um enorme cata-vento que fazia girar a máquina de moer. Pois o Dom Quixote viu, nesses moinhos, gigantes que agitavam braços, desafiando-o para a luta.

Sancho Pança, seu ajudante, tentou convencê-lo de que não havia gigante nenhum; mas foi inútil.

Dom Quixote estava certo de que aquele era o grande combate de sua vida. Empunhando a lança, partiu a galope contra os gigantes...

O resultado, diz Cervantes, foi desastroso. A lança do cavaleiro ficou presa nas asas do moinho, ele foi levantado no ar e depois jogado para longe. Para Sancho, e para todas as pessoas que ali viviam, uma clara prova de que o homem era mesmo maluco.

Essa era a história que Cervantes contava. Já meu tatara-tatara-tataravô, que também conheceu Dom Quixote, narrava o episódio de uma maneira inteiramente diferente. Ele dizia que, de fato, Dom Quixote viu os moinhos e que ficou fascinado com eles, mas não por confundi-los com gigantes. “Se eu conseguir enfiar minha lança naquelas asas que giram”, pensou, “e se puder aguentar firme, terei descoberto uma coisa sensacional”.

E foi o que ele tentou. Não deu completamente certo, porque nada do que a gente faz dá completamente certo; mas, no momento em que a asa do moinho levantava o Dom Quixote, ele viveu o seu momento de glória. Estava subindo, como os astronautas hoje sobem; estava avistando uma paisagem maravilhosa, os campos cultivados, as casas, talvez o mar, lá longe, talvez as terras de além-mar, com as quais todo mundo sonhava. Mais que isso, ele tinha descoberto uma maneira sensacional de se divertir.

É verdade que levou um tombo, um tombo feio. Mas isso, naquele momento, não tinha importância. Não para Dom Quixote, o inventor da roda-gigante.

SCLIAR, Moacyr. Vice-versa ao contrário. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 2001. p. 17-8.


Piratas sem piedade

Voltando das ilhas do Caribe, o pirata francês Jean-Thomas Dulaien comandava seus dois navios, que se chamavam Sem rumo e Sem piedade.

Na altura da linha do Equador, desviou-se rapidamente da rota programada e veio dar nas costas do Maranhão.

— Que sorte! — exclamou de repente. — [...]. Não acredito no que estou vendo. Vou procurar imediatamente um bom local para lançar âncora. Esta era a grande oportunidade que eu esperava na vida...

O que tanto encantava Dulaien era, na verdade, uma visão macabra. A poucas milhas do litoral, mas fora do alcance da vista de quem estivesse em terra, uma nau portuguesa, com a cruz-de-malta estampada em suas velas, estava adernada a estibordo. Com certeza, tinha sido atingida à noite por forte tempestade: seus mastros estavam partidos, o velame rasgado, o timão quebrado e, boiando no mar, nas proximidades do barco, havia corpos de marinheiros mortos.

Tudo isso, porém, não estava interessando a Dulaien: seus olhos brilhavam porque, do alto da gávea de seu barco, onde estava pendurado, ele já imaginava o carregamento da nau: sacos e arcas abarrotados de moedas e lingotes de ouro, dos quais poderia se apossar.

Tudo seria seu! Bastava chegar à nau antes que afundasse de vez e ordenar a seus homens que, cuidadosamente, a saqueassem.

E Dulaien estava certo. O feixe de luz que se espalhou ao se abrirem as portas dos porões do navio fez refulgir o ouro, que transbordava de sacos e mais sacos e se espalhavam pelo chão.

—Vamos, molengas, vamos ao saque! — gritou, animando seus homens. — O lucro é bom. Mas façam depressa, antes que essa banheira afunde!

Muito experientes em pilhagens, os piratas de Dulaien esvaziaram a nau em menos de uma hora. Quando a embarcação afundou, o Sem piedade já estava cheio de ouro, conforme as ordens do capitão.

—E agora, meus caros, vamos festejar! Tragam para este navio toda a comida e toda a bebida que houver no Sem rumo. A festa hoje vai ser aqui, ao lado de nossas riquezas.

—Mas é mesmo para levar tudo, capitão? Temos suprimento para toda a viagem de volta à França. É muita coisa, senhor.

—Não ouse contrariar minhas ordens, se não quiser ser trancado no porão a pão e água!

Os homens fizeram o que Dulaien mandou e, logo em seguida, os dois navios piratas rumaram para as proximidades de uma ilha. Ao cair da noite, os festejos a bordo: miais beberam do que comeram, fazendo tinir as moedas de ouro sobre a tosca madeira de grande mesa improvisada no convés.

Alta hora da madrugada, Dulaien sugeriu:

—Vamos todos para terra! Quero que meus homens descansem ao ar livre... [...]

Sem condições de discutir nada, os homens saíram nos botes, remando lentamente. O capitão pirata ia à frente: ao contrário de seus comandados, parecia sóbrio, forte, sem sono.

Duas horas depois, quando todos já dormiam, cobertos pelas estrelas e embalados pelo vinho, um barquinho afastou-se sorrateiramente da ilha, rumo ao Sem piedade: era Dulaien, que só, com todo o ouro, bem escondido no porões, fugia para a Europa. [...]

No dia seguinte, por volta do meio-dia, ao acordar, os marinheiros não tiveram outra opção. Voltaram ao Sem rumo e procuraram o porto brasileiro mais próximo. Para não morrer de fome e para poder voltar à Europa, tentaram saquear a cidade, mas foram presos imediatamente e trancafiados na mais subterrânea e escura masmorra.

E é bem provável que tenham morrido lá, pois quem iria salvá-los?

Suely Mendes Brazão. Contos de piratas, corsários e bandidos. São Paulo: Ática, 1992. P.21-24

GLOSSÁRIO

Adernado: inclinado, tombado.

Cruz-de-malta: símbolo do cristianismo, utilizado em navios portugueses.

Convés: piso ou pavimento de um navio.

Macabra: trágica

Masmorra: prisão.

Refulgir: brilhar intensamente.

Nau: grande embarcação.

Timão: roda ou volante com que se controla o leme.