terça-feira, 12 de setembro de 2017

Girafa

Leio que no Jardim Zoológico há uma girafa, macho e triste, chamada Santoro, que matou a companheira e, por sua vez, está morrendo de tristeza. Ao lado da notícia, uma foto do animal: o pescoço infinito ergue contra as nuvens do céu uma cabeça de fábula. É a própria imagem da solidão.
Todo homem solitário é uma girafa. Perdoem se deliro, mas é. Como veem, discordo de Kafka, que transformou um homem solitário em inseto. Há os que viram inseto, admito, mas há os que atravessam as ruas vertiginosamente sós, com a cabeça nas nuvens. Se ser solitário é ser girafa, o que não será uma girafa solitária?
Consulto o fascinante livro Mamíferos, editado pelo MEC, aprendo que nas horas de aflição as girafas gemem baixinho — é a sua fala. E, para confirmar minha intuição, leio que, por ter pescoço tão comprido, a girafa não consegue lamber o próprio corpo. É a companheira quem faz esse serviço para ela. Quer dizer que uma girafa solitária não se basta, nem pra se coçar. A forma diz tudo. O pescoço a distancia de si mesma. E penso com mais pena ainda na girafa Inocêncio Santoro, só, no Jardim Zoológico, fitando por cima das árvores um horizonte sem esperanças...
Mistura de bicho e planta, a girafa é quase um ente mitológico. Com sua forma antiga e onírica, ela parece vir de uma idade em que não apenas os homens, mas a própria natureza gostava de sonhar.

(GULLAR, Ferreira. O menino e o arco-íris. São Paulo: Ática, 2001. Págs. 90-92)
Guerra

Estamos em guerra, não há dúvida. Não me refiro à guerra fria entre a URSS e os Estados Unidos nem à guerra econômica deste contra Cuba. Refiro-me à guerra cotidiana, essa que todos nós pelejamos, mal começa o dia. Guerra não declarada, não percebida pela maioria — mas guerra de fato. Nem fria nem quente: morna.
Trata-se de uma guerra minuciosa e sem quartel, sem exércitos formados e sem generais (bem, há os generais, mas, na batalha cotidiana, cada general comanda a si mesmo: e somos todos generais). É a guerra do leite, da carne, do pão, da manteiga, do emprego, do amigo, do inimigo, do lotação, do trem, do elevador. Batalhas tachistas, indeterminadas e sinuosas. Não obstante, duras.
Dentro dessa guerra cotidiana, há batalhas microscópicas: é um sujeito que lhe pisa o pé ou o empurra. Você reclama ou não, revida ou não. O outro também está guerreando, de arma em riste, e lá vai a guerra para diante. E há a guerra subterrânea da memória, a chamada luta intestina do homem consigo mesmo, do adulto com a criança soterrada, do coração com a mente. Olho da janela e vejo a avenida cheia, pessoas que vão e vêm, na aparente tranquilidade desta morna guerra.

Quem me chamou a atenção para esse fato foi um amigo, que entrou comigo numa loja de artigos para homens, na Lapa, há uns seis anos. Havia na vitrina uma camisa simpática e bem barata. O dinheiro era curto e a ocasião, propícia. Entramos para ver, mas o vendedor só nos mostrava camisas que custavam o dobro da exposta. Depois de muito,  confessou que da que estava na vitrina não havia mais em estoque.  Mas o fez com maus modos, e eu revidei: "É por isso que sua loja fica às moscas. Vocês embromam os fregueses”. Disse e fui saindo com meu amigo. E eis que o dono da loja e os empregados avançaram para nós aos insultos. Tratamos evidentemente de dar o fora, contentando-nos com os revides, de longe. Nesta altura, meu amigo teve a frase definitiva: "Vocês estão querendo é guerrear".  Era mesmo.  E nesta batalha estamos todos, inapelavelmente. Todos os dias, tomo meu banho e meu café, visto-me, dou adeus aos meninos e saio para guerrear.  À noite, se volto, volto ileso ou ferido, mas as feridas ninguém vê.

        (GULLAR, Ferreira. O menino e o arco-íris. São Paulo: Ática, 2001. Págs.73-74)

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Dom Ramiro vai à Europa


Ninguém, das centenas de pessoas que estavam àquela tarde no Aeroporto de Ezeiza, poderia imaginar quanto custara ao dr. Ramiro González chegar até ali: maletas fechadas a chave, passaporte e passagem na mão, esperando o momento de embarcar para a distante e mitológica Europa. Mas o fundamental é que estava tudo em ordem. E previsto.
A coisa começou vários meses atrás, quando Ramiro cedeu à pressão da filha e da mulher. "Precisas conhecer a Europa, papai. Chega de trabalhar, trabalhar. Chegaste já aos cinquenta e a vida se vai." Essas últimas palavras fizeram estremecer o acomodado coração de Ramiro: a vida se vai. No dia seguinte, no consultório, entre um cliente e outro, as palavras voltavam-lhe à memória: se vai, se vai... De volta à casa, abriu o jornal e não conseguiu ler as notícias com atenção: Paris, UP; Londres, UP; Roma, Berlim, Milão... Esses nomes de cidades famosas provocavam um redemoinho de sonhos e desejos em sua alma. E medo também. Comparava sua rua tranquila, a sala de sua casa, tudo conhecido e seguro. Por quais ruas e avenidas, por quais quartos de hotéis e restaurantes iria pervagar? Que poderia acontecer com ele e sua pobre mulher soltos num mundo desconhecido? Mas, ao mesmo tempo, lembrava-se de que a vida se ia.
Um belo dia entrou em casa decidido. Chamou a mulher e comunicou-lhe a decisão de ir com ela à Europa.
— Mas aonde? Paris? Londres?
— Ainda não sei. Vamos estudar a coisa pacientemente.
Mas, tomada a decisão, tudo se precipitou. No dia seguinte, entrava em casa carregado de folhetos turísticos, guias de viagem, mapas de cidades. Depois do jantar, ele, a mulher e a filha começaram a examinar os possíveis roteiros. Perderam nisso toda a noite e foram dormir aflitos. No dia seguinte, antes do café da manhã, já estava ele a examinar mapas e rotas aéreas. Saiu, comprou um mapa grande da Europa.  Ao fim de alguns dias, estava traçado o roteiro, e iniciou-se uma nova etapa da "viagem".  
Agora, tratava-se de escolher os hotéis em cada cidade.
— Isso se escolhe lá — sugeriu a mulher impaciente.
— Lá?! Só saio daqui com tudo acertado, ou não vou.    
Visitou agências de turismo, embaixadas, anotou preços, calculou a conversão das moedas, e numa semana definira os hotéis onde ficariam hospedados. Perfeito, mas que faremos nessas cidades? Que lugares visitaremos? A mulher fez cara de aborrecimento. Ele seguiu em frente, pesquisando os pontos turísticos mais interessantes de cada cidade: museus, igrejas...
— Não gosto de museu — declarou a mulher. — Não vou fazer uma viagem tão longa pra me meter numa casa cheia de quadros velhos!
— Quadros velhos, sua ignorante! Obras célebres!
— Quero é passear, conhecer as lojas, as ruas, os lugares bonitos.
— Isso também — admitiu ele.
E com uma caneta ia assinalando, no mapa de Paris, a rua do hotel onde se hospedariam e os diferentes pontos que visitariam.
— Na primeira manhã — dizia ele — sairemos do hotel e caminharemos por esta rua, está vendo aqui?
— Que rua? Isso é um labirinto infernal.
— Esta. Bem, seguiremos até esta esquina, dobraremos à direita, o Louvre está a umas poucas quadras...
— Desse jeito, não vai ser preciso viajar.  Já estás em Paris, caminhando pelas ruas... Que graça tem isso? 
— E que graça tem se perder numa cidade como essa, se mal sabemos algumas palavras em francês?
— Tu, porque eu falo francês correntemente!
— Eu sei!...
Houve atritos, discussões, amuos. Quase cancelam a viagem. Mas para ele isso já era impossível: se metera naquilo até o pescoço. E assim, o coração pulsando forte, Ramiro e a mulher estavam agora ali, em frente ao balcão da Aerolíneas Argentinas, prestes a voar.
E voaram. Despediram-se da filha e dos sogros, e entre vaidosos e assustados entraram no avião que os levaria até Madri, onde fariam uma conexão para Atenas.
Era uma tarde límpida e eles cruzaram o Atlântico sorrindo. Quando chegaram a Madri, muitas horas depois, o avião da conexão havia sido sequestrado. Reinava uma grande confusão no tráfego aéreo. Na confusão, as maletas desapareceram. Foram levados para um hotel que não escolheram, numa cidade que não fazia parte do roteiro que traçaram e passaram a noite lavando camisa, cueca e calcinhas para poder vestir no dia seguinte.
A mulher cantarolava e o olhava de soslaio.
— Os teus planos, hein, Ramiro?

Ele fazia que não ouvia.

      (GULLAR, Ferreira. O menino e o arco-íris. São Paulo: Ática, 2001. pp. 54-57)
O ovo

Aquele restaurante era tão triste como a maioria desses pequenos restaurantes que, depois das sete da noite, dão de comer à fauna dos trabalhadores noturnos. Pessoas sozinhas em mesas de dois e quatro lugares, pessoas que são sempre as mesmas, àquela hora, mas que não se falam nem se cumprimentam. Comem em silêncio e vão embora. O ambiente era esse até que apareceu o homem do ovo, um sujeitinho magro de cara chupada.
– Já escolheu?
– Quero um ovo, mas nem cozido, nem frito, nem quente...
– Como?
– Quero um ovo entre cozido e quente, sabe? Nem muito mole, nem muito duro.
Era natural que a coisa não desse certo. O garçom pediu na cozinha "um ovo cozido mal passado". Trouxe-o para a mesa, o homenzinho olhou desaprovou com a cabeça: estava mole demais. O garçom desculpou-se e prometeu trazer outro ovo, no "ponto" exato. Trouxe. O homenzinho de novo desaprovou: estava duro demais. "Como hoje assim mesmo; amanhã, daremos jeito."
Na noite seguinte, disse ao garçom: "Avisa ao cozinheiro que deixe o ovo ferver durante três minutos e meio, nem mais nem menos". Mas ainda não era dessa vez que se atingiria o ideal. "Sei o que foi" – disse o freguês –, "ele pôs o ovo na caçarola antes da água ferver". O próximo ovo teria mais chance. "Lembre-se: três minutos e meio precisamente." O garçom explicou que não tinha relógio, o cozinheiro também não.
Veio o dono do restaurante. "Precisamos de alguém que controle o tempo de preparo de um ovo”, explicou-lhe o homenzinho. O dono controlaria. "Quando a água ferver, me avise e eu dou o sinal para colocar o ovo na panela. Nosso amigo fica observando o ponteiro de segundos, OK?"
A essa altura o restaurante parara para acompanhar a operação ovo. "Começou a ferver." "Pronto, ponha o ovo na panela." Durante três minutos e meio houve um silêncio total. "Pode tirar", gritou o patrão. E quando o garçom veio com o ovo, os fregueses rodearam a mesa do homenzinho, que já o descascava: "Ótimo".
E a partir desse dia, o restaurante ganhou outra vida: chegada a hora do ovo, todos paravam de comer e ficavam esperando. Nasciam discussões sobre o tempo exato para conseguir um ovo daqueles. "Seu relógio atrasa." "Nada disso, uso relógio de aviador." "Para ovo de casca pintada o tempo é três minutos e cinquenta e oito segundos." "É muito: três e cinquenta e sete." Mais tarde surgiram as apostas e dúzias de ovos eram devorados àquela hora. Em consequência disso, o restaurante prosperou e a freguesia engordou. Mas o homenzinho procurou outro restaurante onde pudesse controlar o tempo exato de seu ovo e comê-lo em paz.


(GULLAR, Ferreira. O menino e o arco-íris. São Paulo: Ática, 2001. pp. 51-53)
Tesouro

Onde tem formiga tem ouro – diziam os mais velhos. E essa afirmativa fabulosa vinha​-nos sempre à lembrança quando as formigas de asa, filhas do Inverno, começavam a brotar das tábuas velhas do assoalho. Cheguei mesmo a propor a meu pai que retirássemos as tábuas do quarto e cavássemos o chão: o ouro compensaria o trabalho.
– Que ouro nada, menino! Aí tem é aranha e barata.
Mas as lendas de tesouro não nasceram sem razão: têm raízes profundas no homem. As crianças, que ainda não têm do mundo uma visão tão dura e pobre, não desistem tão facilmente dos tesouros ocultos. Nós lá de casa não desistimos.
Um belo dia, uma de minhas irmãs sonhou que havia uma caixa de dinheiro enterrada no quintal. Uma voz lhe dissera: “dê cinco passos a partir da mangueira na direção das bananeiras; nesse ponto está o tesouro enterrado”.
Decidimos desenterrá-lo. Tínhamos uma picareta e uma pá, que nos pareceram suficientes para realizar o trabalho. Marcamos a direção, contamos os passos e começamos a cavar. Éramos cinco, contando com a lavadeira, que foi convocada para o serviço extraordinário. Nós nos revezamos e o buraco foi crescendo. Ao meio-dia, quando entramos em casa para almoçar, nossa mãe levou um susto: tínhamos barro dos pés às sobrancelhas. Depois do almoço, com o sol ainda quente, voltamos ao trabalho. E cavamos sem interrupção até à hora do jantar.
Cavávamos e sonhávamos. A dona do tesouro – a que ouvira a voz – prometia repartir as moedas entre todos. A lavadeira teria também uma boa recompensa. Compraríamos roupas novas, brinquedos, doces e daríamos uma festa com orquestra. De minha parte, entre cético e fascinado, pensava apenas na descoberta: seria formidável que tudo fosse verdade, que ali houvesse realmente uma caixa de moedas de ouro.
Os adultos de casa riram muito de nós, à mesa do jantar. Mas ninguém sugeriu que interrompêssemos a escavação. Além do mais, já encontráramos um indício: uma imagem de alumínio representando São Jorge. Ali havia alguma coisa – estávamos convictos. Cavamos noite adentro, à luz de velas.
A faina foi retomada na manhã seguinte, bem cedo. É certo que, a essa altura, a pá e a picareta doíam em nossas mãos cheias de bolhas d'água. O buraco já me batia pela cintura. Em ritmo mais lento atravessamos este segundo dia e interrompemos o trabalho ao anoitecer. Prometêramos continuar durante a noite, mas estávamos exaustos e fomos dormir cedo.
O outro dia amanheceu chovendo, e a chuva durou o dia todo. Não trabalhamos. Na manhã seguinte, o sol se abriu, mas nosso entusiasmo já se tinha fechado. O buraco estava cheio de água e era desagradável mexer com aquela lama.
Faz muitos anos que isso aconteceu. O tempo deve ter fechado o buraco que nosso sonho abrira em vão. Mas aqueles dois dias de trabalho em equipe valeram o ouro que não existia em nosso quintal.

                 (GULLAR, Ferreira. O menino e o arco-íris. São Paulo: Ática, 2001. Págs.15-16)
                                                                    O menino e o arco-íris 

          Era uma vez um menino curioso e entediado. Começou assustando-se com as cadeiras, as mesas e os demais objetos domésticos. Apalpava-os, mordia-os e jogava-os no chão: esperava certamente uma resposta que os objetos não lhe davam. Descobriu alguns objetos mais interessantes que os sapatos: os copos – estes, quando atirados ao chão, quebravam-se. Já era alguma coisa, pelo menos não permaneciam os mesmos depois da ação. Mas logo o menino (que era profundamente entediado) cansou-se dos copos: no fim de tudo era vidro e só vidro. 
          Mais tarde pôde passar para o quintal e descobriu as galinhas e as plantas. Já eram mais interessantes, sobretudo as galinhas, que falavam uma língua incompreensível e bicavam a terra. Conheceu o peru, a galinha-d´Angola e o pavão. Mas logo se acostumou a todos eles, e continuou entediado como sempre. 
           Não pensava, não indagava com palavras, mas explorava sem cessar a realidade. Quando pôde sair à rua, teve novas esperanças: um dia escapou e percorreu o maior espaço possível, ruas, praças, largos onde meninos jogavam futebol, viu igrejas, automóveis e um trator que modificava um terreno. Perdeu-se. Fugiu outra vez para ver o trator trabalhando. Mas eis que o trabalho do trator deu na banalidade: canteiros para flores convencionais, um coreto etc. E o menino cansou-se da rua, voltou para o seu quintal. 
         Começou a cavar. Estava certo de que encontraria, ali, alguma coisa surpreendente. Cavou, cavou: achou uma rodela de metal, correu com ela para limpá-la e se decepcionou – era um níquel de 300 réis. Saiu de casa para cavar num terreno baldio e lá não encontrou nada mais que um caco azul de vidro de leite magnésia. Acreditou, de início, tratar-se de fragmento de osso de algum animal estranho: osso de anjo? Não era.
          O tédio levou o menino aos jogos de azar, aos banhos de mar e às viagens para a outra margem do rio. A margem de lá era igual à de cá. O menino cresceu e, no amor como no cinema, não encontrou o que procurava. Um dia, passando por um córrego, viu que as águas eram coloridas. Desceu pela margem, examinou: eram coloridas! 
           Desde então, todos os dias dava um jeito de ir ver as cores do córrego. Mas quando alguém lhe disse que o colorido das águas provinha de uma lavanderia próxima, começou a gritar que não, que as águas vinham do arco-íris. Foi recolhido ao manicômio. E daí? 
                   (GULLAR, Ferreira. O menino e o arco-íris. São Paulo: Ática, 2001. págs.11-12

domingo, 11 de junho de 2017

Contos populares


KanniferstanConto alemão

Ouvi esta história faz muito tempo, quando eu era pequena, ainda antes de chegar ao Brasil, vinda da Rússia, aos 10 anos de idade. Quem a contou - ou leu - para mim foi o meu pai, que era um grande contador de histórias. E aí vai esta velha história, recontada conforme eu me lembro dela...
Os alemães sempre foram grandes andarilhos e, desde tempos remotos, faziam longas viagens a pé ou pegando carona em carroças, de vez em quando, conforme a sorte de cada um, só para "conhecer o mundo" - mesmo sendo muito pobres. Saíam de mochila nas costas e cajado na mão e, para adquirir experiência de vida, aventuravam--se, nem eles mesmos sabiam para onde e até onde.
E foi assim que um belo dia Hans, um pobre obreiro alemão, foi parar em Amsterdã, importante cidade portuária da Holanda, muito distante da aldeia do nosso andarilho.
Amsterdã deixou o pobre Hans embasbacado. A cidade era grande, opulenta e ruidosa, casas e mais casas, uma infinidade de embarcações de todos os tipos e uma multidão de gente atarefada por toda a parte. Boquiaberto, o nosso deslumbrado alemão reparou de repente numa casa de tamanho que ele não imaginara nem em sonho. Só de chaminés aquele telhado tinha mais de dez, três andares, janelas faiscantes e um porão enorme — um espanto só!
Então, com um tímido cumprimento, Hans dirigiu-se ao primeiro transeunte e lhe perguntou:
— De quem é esta casa, com tantas janelas cheias de tulipas, narcisos e rosas?
Mas, ao que parece, aquele transeunte estava muito apressado, ou sabia tanto alemão quanto Hans holandês, ou seja, nada. O fato é que ele respondeu apenas com uma única palavra:
— Kanniferstan.
O simplório alemão concluiu que aquele era o nome do proprietário do importante casarão e pensou com os seus botões: “Deve ser um bocado rico esse senhor Kanniferstan...”. E continuou o seu caminho pelas ruas da grande cidade.
Pouco depois, ele chegou ao porto e ficou tonto ao ver tantos mastros, pareceu estar diante de uma floresta. E logo o seu olhar se deteve em um enorme navio ancorado, recém-chegado da Índia, com toda uma multidão se aglomerando ao lado da majestosa embarcação, que estava sendo descarregada. Eram verdadeiras montanhas de sacos, fardos, caixas e barris de mercadorias, cheios de café, açúcar, pimenta, grãos, arroz, especiarias e muita coisa mais. De queixo caído, nosso alemão olhava para tudo aquilo e ficou com vontade de saber a quem pertencia tamanha fartura.
Então ele perguntou a um vigoroso marujo, que carregava enorme fardo na cabeça, como se chamava o senhor a quem o mar trouxera tantos tesouros de uma só vez.
De cenho franzido, o marujo respondeu, de passagem:
— Kanniferstan - e se foi com a sua carga.
— Outra vez! — exclamou Hans em voz alta. — Ora quem diria! Mas que nababo é esse Kanniferstan! Com tamanha fortuna nem é tão difícil construir um casarão daquele tamanho e encher cem janelas com vasos dourados de tantas tulipas, narcisos e rosas!
E Hans prosseguiu no seu caminho, pensativo. Assim, caminhando e pensando, ele foi tomado de grande tristeza ao matutar quanta gente rica havia no mundo, enquanto ele, Hans, era pobre como um rato de igreja. E como seria bom se ele, Hans, o pobre Hans, fosse igual àquele Kanniferstan e como seria a sua vida, quando... quando ele viu, de repente, um cortejo fúnebre passando na sua frente.
O Hans viu uma parelha de cavalos, cobertos por mantas negras, puxando uma bela carreta com um rico esquife, em passos vagarosos, como se soubessem que estavam levando o defunto, no seu caixão, para a sepultura, para todo o sempre.
Seguindo o féretro, a pé, marchavam lentamente parentes, amigos e conhecidos, em luto solene e silencioso. Ao longe, ouvia-se o sino da igreja dobrar, solitário.
Hans foi tomado de grande tristeza, como alma boa e humilda que era, à vista desse melancólico espetáculo. Tirando o chapéu e murmurando uma prece, ele acompanhou com os olhos o silencioso cortejo.
Depois, aproximando-se de uma das últimas pessoas que seguiam o esquife, um senhor que estava muito ocupado com um assunto importante - calcular quanto lucro ele auferiria da venda da canela e da pimenta —, Hans puxou-o timidamente pela manga e disse:
— Penso que o falecido era seu bom amigo, já que o vejo tão pensativo. Com todo o respeito, posso perguntar quem era ele?
— Kanniferstan — foi a lacônica e impaciente resposta.
As lágrimas jorraram dos olhos do honrado alemão, que sentiu o coração oprimido e pesado... Mas, logo em seguida, ele o sentiu leve de novo. E, com um suspiro, o nosso Hans disse:
— Pobre, pobre Kanniferstan! De tamanha fartura e riqueza, o que lhe restou? Não será o mesmo que a mim, mais cedo ou mais tarde, sobrará de toda a minha pobreza? Urna simples mortalha e um estreito caixão!
Mergulhado nesses pensamentos, Hans se arrastou atrás dos enlutados, como se ele próprio fosse parente do morto.
Hans entrou na igreja, junto com os outros. Lá ele ouviu contrito o sermão em holandês, do qual não entendeu nada, mas escutou com profundo sentimento.
E depois, quando o corpo de Kanniferstan foi entregue à terra, Hans chorou copiosamente e por fim, de coração aliviado e alma lavada, deixou Amsterdã e seguiu a sua jornada de andarilho.
Desde aquele dia, sempre que a tristeza o visitava, e ele ficava deprimido ao ver a felicidade das pessoas ricas, Hans se consolava, lembrando-se de Kanniferstan, com sua casa luxuosa, seu grande navio... e sua estreita sepultura.
Mas o que o bom Hans não sabia, e nunca ficou sabendo, é que o nome ou, melhor dizendo, a palavra kanniferstan, na verdade "ik kan je niet verstaan", que ele ouvira tantas vezes naquele dia em Amsterdã, significava em holandês "eu não compreendo"!



O diabo e o granjeiro - Conto alemão

Um pobre lavrador precisava construir a casa da sua pequena granja, mas não conseguia realizar esse sonho. O que ganhava mal dava para alimentar os dois, ele e sua mulher. Por mais economia que fizesse, não conseguia juntar o necessário para começar a construção.
Um dia, estando a caminhar pelo seu pedaço de chão, mergulhado em tristes pensamentos, deu com um velho esquisito, que lhe disse, com voz desagradável:
‒ Para de te preocupar, homem. Eu posso resolver o teu problema antes do primeiro canto do galo, amanhã cedo.
— Como assim? — espantou-se o lavrador.
— Tu precisas construir a casa da granja, certo? Pois eu me encarrego de construir e entregar-te essa obra, antes do canto do galo, em troca de uma pequena promessa tua.
— Que promessa? Não tenho nada para te oferecer em troca de tal serviço.
— Não importa: o que quero que me prometas é um bem que tu tens, mas ainda não sabes. É pegar ou largar.
O pobre granjeiro pensou com seus botões: "O que é que eu tenho a perder?". E, sem hesitar mais, respondeu ao velho que aceitava o trato, fazendo a promessa.
— Só que quero ver a casa da granja construída amanhã, antes do canto do galo — observou ele, ainda meio incrédulo.
Voltou correndo para casa, para comunicar à esposa o bom negócio que acabara de fechar.
A pobre mulher ficou horrorizada:
— Tu és louco, marido! Acabas de prometer ao velho, que só pode ser o próprio diabo, o nosso primeiro filho, que vai nascer daqui a alguns meses!
O homem, que não sabia da gravidez, pôs as mãos na cabeça, mas não havia mais nada a fazer: o pacto estava selado.
Porém a mulher, que não estava disposta a aceitá-lo, ficou pensando num jeito de frustrar o plano do diabo. E, naquela noite, sem conseguir dormir, ficou o tempo todo escutando, apavorada, o barulho que o diabo e seus auxiliares infernais faziam ao construírem a tal obra com espantosa rapidez.
A noite ia passando, aproximava-se a madrugada. Mas, pouco antes de o céu clarear, quando faltavam só umas poucas telhas para a conclusão da obra, a atenta mulher do granjeiro pulou da cama e, rápida e ágil, correu até o galinheiro, onde o galo ainda não despertara.
Tomando fôlego, imitou o canto do galo, com tal perfeição, que todos os galos da vizinhança, junto com o seu próprio, lhe responderam com um coro sonoro de cocoricós matinais, momentos antes do romper da aurora. Como um trato com o diabo tem de ser estritamente observado, tanto pela vítima como por ele mesmo, a obra em final de construção teve de ser parada naquele mesmo instante, por quebra de contrato, “antes do primeiro canto do galo”.
E o diabo, espumando de raiva por se ver assim ludibriado e espoliado, se mandou de volta para o inferno, junto com os seus acólitos, para nunca mais voltar àquele lugar.
A casa da granja permaneceu construída, para alegria do granjeiro, faltando apenas aquelas poucas telhas, que jamais puderam ser colocadas.


As três respostasConto inglês

Na Inglaterra, daquele tempo, vivia na corte do rei João um importante prelado, o abade de Canterbury, tão vaidoso que um dia chegou a se vangloriar de ser mais rico e de ter um palácio mais belo do que o do próprio soberano.
Quando essa notícia chegou aos seus ouvidos, o monarca ficou muito irritado e mandou convocar o prelado à sua presença.
O abade apressou-se a comparecer perante o rei, sem desconfiar da surpresa que o aguardava. O rei João foi ríspido, dizendo que a gabolice do abade constituía crime de lesa-majestade, punido com a pena de morte e o confisco dos bens do réu.
O abade tremeu de medo, jurando ser inocente e implorando o perdão real. E tanto suplicou que o rei João, fingindo compadecer-se dele, disse que o perdoaria, se ele respondesse às três perguntas que lhe faria em seguida.
— A primeira pergunta é a seguinte: assim como me vês, sentado no meu trono de ouro, com a minha coroa na cabeça e o cetro na mão, dize-me quanto eu valho em dinheiro. A segunda pergunta é: quanto tempo eu levaria a cavalo para fazer a volta ao mundo? E a terceira é: o que eu estou pensando aqui e agora?
Assustado, o abade de Canterbury pediu ao rei João que lhe concedesse três dias para pensar nas respostas. O rei, fazendo-se de generoso e certo de que o prelado jamais responderia às suas perguntas, concedeu-lhe esse prazo.
O abade saiu apressado, consultou doutores, sábios e feiticeiros, mas ninguém soube responder àquelas perguntas. Ao entardecer do terceiro dia, de volta ao seu palácio, cruzou com o pastor do seu rebanho de ovelhas. Reparando no aspecto abatido do amo, o pastor lhe perguntou qual a razão de tamanha tristeza. O abade, num desabafo, contou-lhe sua infeliz e perigosa situação. E muito se surpreendeu ao ouvir do pastor uma estranha proposta:
— Acho que sei a solução para o seu o seu caso. Repare que nós dois temos a mesma altura e o mesmo porte. Se confiar em mim, eu me apresentarei amanhã em seu lugar perante o rei, disfarçado, em traje de monge. Se Deus quiser, acharei as respostas às três perguntas.
Como não tinha nada a perder, o abade concordou com o plano.
No dia seguinte, o pastor, encoberto pelo capuz do hábito de monge, apresentou-se ao rei João, à espera das três perguntas, que o monarca lhe fez em seguida, sem reconhecê-lo.
— Então, abade atrevido, responde-me sem hesitar: assim como me vês, sentado no meu trono de ouro, com a minha coroa na cabeça e o cetro na mão, quanto eu valho em dinheiro?
— A resposta — disse o pastor disfarçado — é a seguinte: Nosso Salvador foi vendido por 30 moedas. Portanto, o vosso valor é 29 moedas, pois acho que Vossa Majestade concordará que vale uma moeda a menos do que Nosso Senhor.
— Não pensei que eu valesse tão pouco — sorriu o rei. - Mas dize-me agora em quanto tempo posso cavalgar em volta do mundo.
— Vossa Majestade — respondeu o falso abade — deve levantar-se ao nascer do dia e cavalgar atrás do Sol até a manhã seguinte, quando o astro nascer outra vez.  Assim, sem erro, terá dado a volta ao mundo em vinte e quatro horas.
— Nunca pensei — riu o rei —  que a volta ao mundo pudesse ser feita tão depressa. Mas agora me diga, abade, o que estou pensando neste exato momento?
— Vossa Majestade — respondeu o esperto pastor — pensa que está falando com o abade de Canterbury. Mas a verdade é que não passo de um pobre pastor de ovelhas.
E, afastando do rosto o capuz de monge, concluiu:
— Estou aqui para pedir perdão para mim e para o meu amo, o abade.
Dessa vez, o rei João riu às gargalhadas e disse:

— Por teres alegrado o meu dia, eu te perdoo pelo atrevimento e mando te dar uma bolsa de dinheiro como recompensa. Vai em paz e dize ao teu patrão que te agradeça porque, graças a ti, eu o perdoo também. Mas ele que se guarde de novas gabolices!


O samurai e a cerejeiraConto japonês

No distrito de Iyo, no Japão, existe uma árvore antiquíssima. É chamada de "cerejeira do décimo sexto dia" porque, nesse dia do primeiro mês do ano lunar, ela se cobre de flores — e somente nesse dia. As cerejeiras costumam florir na primavera, mas essa é diferente: floresce no inverno, porque dentro dela habita o espírito de um ser humano.
Sobre ela conta-se curiosa história. Há muitos e muitos séculos, a cerejeira crescia no jardim de um samurai, um guerreiro, que a amava muito. Durante muitos anos, ele se deliciou com a formosa e perfumada florada no décimo sexto dia do primeiro mês de cada ano.
O samurai teve vida longa. Viveu tanto tempo que viu morrer toda a sua família: pais, irmãos, filhos, netos e até bisnetos. Ficou muito velho e muito só, sem ninguém a quem dedicar afeto e carinho. Vira a cerejeira crescer e florescer desde criança. Os pais e os avós dele já haviam brincado à sombra da árvore.
Na sua solidão de ancião, todo o amor do samurai se voltou para aquela cerejeira já bem velha, mas que ficava viçosa e florida sempre no mesmo dia, todos os anos, para alegria e consolo de seu coração solitário.
Os anos foram passando. Até que, num décimo sexto dia do primeiro mês de certo ano, a cerejeira amanheceu nua e seca. O velho caiu em profunda tristeza. Não deixou que arrancassem a árvore morta, na esperança de que no ano seguinte ela revivesse. Mas a pobre cerejeira ficava cada vez mais seca.
O samurai ficou tão abatido que os vizinhos se condoeram e deram-lhe de presente uma cerejeira nova, a mais bonita que puderam encontrar. O velhinho agradeceu, fingindo ficar satisfeito com o presente, mas no fundo da alma continuava roído de tristeza. Sentia saudade da florada de inverno da árvore amada.
Dia e noite ele pensava na cerejeira, inconsolável.
No ano seguinte, quando chegou o décimo sexto dia do primeiro mês, teve uma ideia que lhe pareceu feliz: lembrou-se de uma coisa na qual todos, naquela região, acreditavam. Quando alguém desejava muito e os deuses permitiam, a pessoa podia fazer uma permuta: trocar a sua própria vida pela de uma planta, de um animal ou mesmo de um inseto!
Então, o velho samurai saiu para o jardim e, ajoelhado junto à cerejeira seca e morta, falou com ela, suplicando:
— Por favor, minha cerejeira amada. Eu imploro. Tem pena de mim e atende ao meu humilde pedido: floresce só mais uma vez, para que eu possa morrer em teu lugar!
Depois da súplica, voltou para casa e lá pegou os seus mais alvos lençóis e seus mais ricos tapetes, que estendeu ao pé da árvore seca. Solenemente, sentou-se no tapete e, sem hesitar, fez o haraquiri, rasgando o próprio ventre com a sua espada, conforme a tradição dos samurais. E morreu feliz, com um sorriso nos lábios.
No mesmo instante, o espírito do velho saiu de seu corpo e entrou na árvore seca. A cerejeira morta reviveu. Fresca e viçosa como antes, cobriu-se de flores lindas e perfumadas.
Desde então, com a neve ainda atapetando o chão, a antiquíssima cerejeira continua florescendo no décimo sexto dia do primeiro mês de cada novo ano lunar, vestindo-se de flores e enchendo o jardim de perfume beleza.

E, de todas as partes, dos povoados mais distantes, vem gente nesse dia para ver a cerejeira florir milagrosamente — e fazer toda sorte de pedidos ao espírito do velho samurai que nela se abriga. 

quarta-feira, 22 de março de 2017

Exercícios



1. “As palavras pertencem ao sistema da língua, mas, quando enunciadas, ganham sentidos, produzem discursos: é a língua viva.”
Aproveitando essas palavras, leia o trecho a seguir de um conto maravilhoso; reflita sobre o papel das palavras e expressões destacadas; em seguida, copie cada uma delas no espaço adequado, de acordo com as informações dadas.

                                                   As aventuras de Simbad, o marujo

Em Bagdá vivia um carregador muito pobre chamado Hindbad. Certo dia, fez uma entrega pesada e teve de ir até a outra cidade. Ele foi e, quando chegou , viu um palácio lindo, ficou encantado e viu um homem que protegia o belo palácio, e o mesmo falou que o palácio admirado pelo Hindbad era do famoso navegante dos percorreu todos os mares iluminados pelo sol. Nisso, perguntou se ele conhecia Simbad. [ ... ]

( _____________________________ ) são termos importantes para o leitor entender o contexto e os lugares a que a história se refere.

( _____________________________ ) marca um tempo indefinido.

( _____________________________ ) marca um tempo definido: momento no qual Hindbad chega a outra cidade.

( _____________________________ ) indica um tempo preciso: o momento em que o homem resolve perguntar a Hindbad se ele conhecia Simbad.


2. Releia o seguinte trecho:

“Era uma vez um corvo muito bobo e convencido que voou para bem longe e foi parar no mar.”

Retire do trecho duas palavras que tenham um valor adjetivo, marcando um julgamento do narrador.



3. Considerando o que você já estudou sobre texto e contexto, analise a seguinte situação:

Um casal sai para jantar em um bom restaurante. Minutos depois que a comida é servida, a mulher vê uma mosca morta no bife. Chama imediatamente o garçom: “Garçom, tem uma mosca no meu bife.” O garçom retira a mosca, pede desculpas e se afasta displicentemente em direção à cozinha.

Observando o contexto em que foi produzida, qual foi a intencionalidade da mensagem e o que há de errado na atitude do garçom?



4. Leia.

previsão do tempo – poema – horóscopo – notícia – bula de remédio – bilhete – bate-papo – tirinhas – anúncio publicitário – placa de trânsito – conversa – receita culinária – etiqueta de roupa – relatório – cheque

O quadro acima contém os nomes de diversos gêneros textuais.
Destaque no próprio quadro aqueles que são mais adequados para as seguintes situações:


>Dar instruções de lavagem e secagem.
>Orientar motoristas.
>Saber dos acontecimentos recentes da cidade, país ou mundo.

5. Muitos gêneros textuais costumam unir linguagem verbal e não verbal para melhor interagir com o leitor. Considerando os gêneros textuais receita culinária, previsão do tempo e tirinha, quais deles podem dispensar o uso de linguagem não verbal sem nenhum prejuízo do conteúdo?  Justifique sua resposta.

Vá até o índice do blog, procure o marcador "Respostas de exercícios" e obtenha as respostas desta atividade.

quarta-feira, 8 de março de 2017

Volta ao mundo em oitenta dias

Todos os capítulos do livro já estão disponíveis. Boa leitura!


Volta ao mundo em oitenta dias
                                                                Júlio Verne
Capítulo 1: O morador tranquilo de uma rua tranquila

                Na sossegada Rua Saville, em Londres, morava um cavalheiro misterioso chamado Fíleas Fogg. Sua casa era simples mas confortável, e ele era um homem que não chamava a atenção de ninguém. Sabia-se apenas que era inglês, que possuía bastante dinheiro no banco e que era sócio do Clube Reformador.
                Vivia sozinho com um criado de quarto, e ninguém conhecia detalhes de sua vida anterior. Fogg quase não falava, não tinha família e passava todos os dias da mesma forma, metódica e ordeira.
                Saía de casa na mesma hora, para almoçar e jantar no clube; voltava sempre à meia-noite. Lá, jogava cartas com seus poucos amigos, mas só pelo prazer da disputa: todo dinheiro que ganhava era doado para caridade.
                Apesar de nunca demonstrar emoção alguma, Fíleas Fogg tinha lá as suas manias. Uma delas era a pontualidade: respeitava a hora marcada até o último segundo, e exigia que seu criado fizesse tudo sempre da mesma forma e à hora exata.
Um dia despediu o criado, pois o rapaz cometera o erro imperdoável de levar-lhe a água para fazer a barba aquecida a 84 graus, em vez de 86 graus, como preferia. Decidido a contratar outro empregado, marcou hora entre as onze e as onze e meia para receber certo rapaz que lhe fora recomendado.
O candidato chegou quase às onze e meia, quando Fogg já ia saindo para almoçar no clube. Era alto e forte, aparentava uns 30 anos, e apresentou-se como Jean.
— Mas pode me chamar de Passepartout — disse ele —; recebi esse apelido porque já passei por muita coisa nesta vida. Fui cantor, artista de circo, dei aulas de ginástica e também fui bombeiro. Vim para a Inglaterra há cinco anos, e trabalho como criado de quarto. Gostaria de trabalhar para o senhor, pois dizem que é o homem mais sossegado da Inglaterra, e sossego é o que eu desejo de hoje em diante!

Passepartout, em francês, significa "passa por tudo". O apelido indicava que Passepartout era um sujeito aventureiro, que passara por muitas peripécias.

— Que horas são? perguntou-lhe Fogg.
— Onze e vinte e cinco — respondeu o rapaz, olhando seu relógio.
— Está quatro minutos atrasado: são onze e vinte e nove. Anote a diferença, e combinamos então que a partir das onze horas e vinte e nove minutos do dia 2 de outubro de 1872 o senhor trabalha para mim.
Sem dizer mais nada, Fogg levantou-se, colocou o chapéu e saiu, deixando Passepartout sozinho na casa onde passaria a morar.
"No Museu de Cera de Madame Tussaud eu vi figuras mais animadas do que o meu novo patrão", pensou ele. Mas não se importou: depois de levar uma vida cheia de aventuras, iria adorar trabalhar para um homem que não fazia nada além de viver pelo relógio, sem emoções, sem excessos, sem novidades.

O Museu de Cera de Madame Tussaud é um museu de Londres, que expõe figuras com rostos e mãos feitas em cera, do tamanho natural, reproduzindo personagens da história e artistas famosos.

 Fíleas Fogg fora almoçar no Clube Reformador, ao qual chegou após dar 575 passos com o pé direito e 576 com o pé esquerdo, como fazia todos os dias. Almoçou e passou um tempo lendo os jornais. No final da tarde jantou, e depois foi para um salão, onde esperou por seus costumeiros parceiros de jogo.
À noite chegaram os membros do clube que costumavam jogar cartas com ele. Enquanto jogavam, conversavam sobre as notícias do dia. A mais interessante era a respeito de um roubo que ocorrera, há três dias, no Banco da Inglaterra.
Um maço de notas no valor de cinquenta e cinco mil libras desaparecera misteriosamente, e o principal suspeito era um cavalheiro distinto que estivera na agência naquela manhã.
                — O banco nunca mais verá esse dinheiro — disse um dos membros do clube.                              
— Nada disso — retrucou outro. — A polícia mandou a descrição do suspeito para todos os portos e estações da Europa e América. O bandido não tem onde se esconder.
                — Não sei não — disse o primeiro —, o mundo é grande.
                — Já não é mais — comentou Fíleas, continuando a jogar.
                — Fogg tem razão — concordou outro cavalheiro —, pois hoje podemos percorrer a Terra inteira em menos tempo do que há cem anos. Portanto, o mundo diminuiu!
                — Então os senhores acham que podemos dar a volta ao mundo em três meses?
                Fíleas Fogg declarou calmamente:
                — Em oitenta dias. Um dos companheiros de jogo concordou com ele, pois um jornal de Londres fizera o seguinte cálculo dos dias que um viajante levaria para dar a volta ao mundo:
Sete dias para ir de Londres a Suez, no Egito, passando por Paris e Bríndisi, na Itália.
Mais treze dias de navio, indo de Suez a Bombaim, na Índia.
Três dias de trem através da Índia, de Bombaim a Calcutá.
Treze dias de navio, de Calcutá a Hong Kong, na China.
Seis dias de navio indo de Hong Kong a Yokohama, no Japão.
Do Japão a São Francisco, nos Estados Unidos, 22 dias de navio.
Sete dias de São Francisco a Nova York.
Nove dias de Nova York a Londres, de navio e trem.
7+ 13 + 3 + 13 + 6 + 22 + 7 + 9 = 80.
Os cavalheiros continuaram discutindo o assunto.  A maioria acreditava que, em tese, a viagem em oitenta dias seria plausível; porém, na prática, não aconteceria — pois o viajante teria de lidar com imprevistos, problemas, atrasos, até naufrágios ou assaltos.
— A viagem é perfeitamente possível — teimava Fíleas, apesar de tudo.
E tanto teimou que os amigos acabaram apostando que ele não faria uma viagem dessas, matematicamente calculada. Achavam que estava brincando.
— Um inglês não brinca com apostas — declarou ele, sem nem piscar. — Tenho 40.000 libras depositadas no banco. Aposto 20.000 libras com quem quiser que farei essa viagem em oitenta dias. Como hoje é 2 de outubro, quarta-feira, partirei para tomar o trem das 8h45 para Dover, e deverei estar de volta a este mesmo salão, em Londres, às 8h45 da noite de sábado, dia 21 de dezembro.
— Aceitamos! — responderam os cinco amigos.
Cada um se propôs a arcar com 4.000 libras da aposta. Redigiram um documento com os termos do acordo e Fogg lhes entregou um cheque de 20.000 libras, para que descontassem caso ele perdesse. Depois, ainda continuou jogando cartas na maior calma do mundo, até as sete horas e 25 minutos.
Então saiu; chegou em casa às dez para as oito da noite. Passepartout, que sabia que o patrão voltava todo dia para casa à meia-noite, estranhou. Atendeu ao chamado dele.
— Partiremos em dez minutos para Dover e Calais — disse ao criado.
O francês fez uma careta, sem entender nada.
— Vamos viajar?
— Vamos dar a volta ao mundo em oitenta dias — respondeu ele, como se estivesse dizendo que iriam até a esquina. — Leve um saco de viagem, com duas camisas e três pares de meias para cada um. Tomaremos o trem das 8h45 da noite.
Não adiantou Passepartout abrir a boca ou arregalar os olhos.
Em dez minutos, o patrão aparecia com um maço de 20.000 libras, que despejou no saco de viagem, e um guia, com os horários de trens e navios, debaixo do braço.
Tomaram uma carruagem e foram até a estação ferroviária. Lá, o criado comprou passagem de trem para ambos. Iriam até Dover, cruzariam o Canal da Mancha de barco, e desembarcariam em Calais. De lá seguiriam para Paris, de trem.

O Canal da Mancha é a faixa de água que separa a Inglaterra (uma ilha) da França (que fica no continente europeu). Naquela época, era atravessado apenas de navio, mas hoje existe um túnel sob o mar, que leva os viajantes de trem de um país a outro.

De Paris, tomariam outro trem que os levaria à cidade italiana de Bríndisi, onde embarcariam no navio "Mongólia", que ia partir com destino ao Egito.
Na estação estavam os amigos do Clube Reformador, que se despediram de Fogg, após este prometer que faria carimbar o seu passaporte nas etapas da viagem.
E eles partiram com o trem das 8h45, sem imaginar a sensação que sua viagem iria causar na Inglaterra. Uma aposta daquelas era algo extraordinário, e logo a notícia estava em todos os jornais. Alguns jornalistas diziam que Fogg era louco; outros admiravam sua coragem em apostar aquela fortuna para provar um ponto de vista. Mas ninguém imaginava as encrencas em que ele iria se meter...


Capítulo 2: Um aventureiro ou um ladrão?

Um inglês em especial ficou com a pulga atrás da orelha com a viagem de Fogg: o detetive Fix, da polícia londrina. Ele fora um dos investigadores encarregados de vigiar os portos, e estava em Suez, no Egito, esperando capturar o ladrão que roubara o Banco da Inglaterra.
No dia em que ia chegar um navio a vapor vindo da Inglaterra, o "Mongólia", Fix conversara com o Cônsul do Reino Unido . Muitos barcos passavam por ali, atravessando o Canal de Suez, que liga o Mar Mediterrâneo ao Mar Vermelho.

Chama-se hoje United Kingdom (Reino Unido) a região das Ilhas Britânicas que compreende Inglaterra, Gales, Escócia e Irlanda do Norte, além de alguns territórios e ilhas espalhados pelo mundo. Na época em que se passa esta história, o Reino Unido dominava ainda parte da Índia e Hong Kong, na China.

Segundo Fix, era bem possível que o ladrão estivesse a bordo, e ele também sabia que o "Mongólia" tinha de abastecer-se de combustível — carvão — para poder continuar sua viagem, atravessando o Mar Vermelho e o Mar da Arábia, até Bombaim, na Índia.
— Se o bandido estiver mesmo a bordo, não acredito que vá para a índia: lá é território inglês e ele pode ser preso — dissera o detetive ao Cônsul. — Provavelmente o ladrão vai desembarcar em Suez e tentar fugir para qualquer lugar da Ásia.
Às onze horas da manhã do dia 9 de outubro, o navio "Mongólia" ancorou no Porto de Suez. Alguns passageiros ficaram a bordo, porém vários desembarcaram na cidade. O detetive olhava atentamente para cada um eles, esperando encontrar alguém que se parecesse com a descrição do suspeito.
Não viu ninguém parecido, mas viu um rapaz alto e forte aproximar-se dele.
— Poderia informar onde posso encontrar o Consulado Inglês, para conseguir um visto num passaporte?         Fix examinou o documento que o desconhecido lhe mostrara.
— De quem é este passaporte? — perguntou.
— De meu patrão, que está a bordo do "Mongólia". Ele quer que seja carimbado pelo Consulado.
Fix sabia que a lei não obrigava ninguém a apresentar passaportes ali, nem a ir pessoalmente ao Consulado. Porém, ao ler a descrição do dono do passaporte, achou-a idêntica à descrição do malfeitor que a polícia de Londres enviara, e respondeu:
— O Consulado fica bem ali, mas seu patrão terá de desembarcar e vir ele mesmo, se quiser um visto.
O outro aceitou a palavra do detetive e voltou para o navio. Fix, sem perder tempo, foi de novo falar com o Cônsul.
— O ladrão está em Suez! — exclamou. — Ele virá ao Consulado pedir um visto, e o senhor precisa reter o homem aqui até que eu consiga uma ordem de prisão contra ele. Vou mandar um telegrama para a Inglaterra, pedindo o documento.
— Sinto muito, mas enquanto não chegar uma ordem de prisão contra esse homem não posso retê-lo aqui — respondeu o Cônsul. — É contra a lei. E como sabe que essa pessoa é o bandido que persegue?
Só pode ser ele — assegurou Fix.
Contudo, quando Fogg e Passepartout apareceram no Consulado, o detetive não pôde fazer nada; demoraria algum tempo até que um telegrama chegasse a Londres, a ordem de prisão fosse emitida, e viesse de navio.  O Cônsul carimbou o passaporte, fez algumas perguntas ao seu dono, que declarou seguir para Bombaim, e deixou-o ir embora.
— O que vou fazer? — agoniou-se o perseguidor. — Já sei: vou interrogar o criado.
Seguiu o inglês e o francês. O cavalheiro voltou ao navio, onde se recolheu ao seu camarote para anotar o dia e a hora em que haviam chegado a Suez; todas as etapas de sua viagem seriam registradas num caderninho. Já Passepartout, ainda sem acreditar que estava na África, ficou passeando no cais; o navio partiria apenas ao meio-dia.
Fix puxou conversa com ele, e descobriu algumas coisas esclarecedoras.
Soube que Fogg viajava com muito dinheiro vivo, para dar a volta ao mundo em oitenta dias, tentando vencer uma aposta. Que Passepartout entrara ao serviço dele no mesmo dia da viagem, e portanto não sabia nada sobre a vida anterior de seu patrão.
"Apressado e cheio de dinheiro?", pensou o detetive. "É o meu ladrão!"
— Preciso ir — despediu-se o criado, olhando o relógio —, ainda vou fazer algumas compras, e são quase dez horas.
— É quase meio-dia — corrigiu Fix. — Seu relógio ainda marca a hora de Londres. Há uma diferença de duas horas no fuso horário entre a Inglaterra e o Egito.
Passepartout entendeu a diferença no horário, mas recusou-se a acertar seu relógio de estimação, e foi fazer as compras encomendadas pelo patrão.

O globo terrestre foi dividido em 24 meridianos, linhas que vão de um polo a outro, separadas a cada 15 graus. Chama-se fuso horário a faixa que fica entre um meridiano e outro. Em cada faixa a hora é diferente: enquanto no Brasil é meio-dia, no fuso seguinte para o Oeste são 13h, e para Leste são 11h.

Enquanto ele corria para embarcar a tempo, o detetive mandou o telegrama planejado para a Polícia da Inglaterra, pedindo que enviassem para Bombaim uma ordem de prisão contra Fogg. Então comprou uma passagem para seguir no "Mongólia". Estava decidido a perseguir o aventureiro até a Índia, onde o prenderia.
A viagem do "Mongólia" foi mais rápida do que se esperava: em vez dos treze dias previstos, o navio cortou o Mar Vermelho e o Mar das Índias em onze: deixara Suez no dia 9 e chegara à Índia no dia 20 de outubro. Fizera uma parada no dia 14, em Áden, para abastecer-se de carvão.
Durante essa etapa da viagem, Fogg continuava não demonstrando nenhuma emoção, nem preocupação com as tempestades ou alegria com a rapidez do navio. Passara os dias no camarote e nos salões de refeições; tornara-se amigo de outros cavalheiros ingleses, e retomara o costume de jogar cartas à noite.
Quanto ao detetive, aproveitou para fazer amizade com Passepartout, inventando que trabalhava para uma companhia comercial e que, por coincidência, a empresa o mandara à Índia. Quanto mais conversava com o criado de Fogg mais acreditava que o inglês era, na verdade, um esperto assaltante.
O navio aportou às quatro e meia da tarde do dia 20 no cais da grande cidade de Mumbai, que na época todos conheciam como Bombaim.


Capítulo 3: Os sapatos de Passepartout

Bombaim era uma das maiores cidades da Índia. Naquela época, boa parte do território indiano era dominada pelo governo britânico. Apesar disso, no interior do país ainda se mantinham os costumes hindus antigos, e os ingleses pouco mandavam.
O "Mongólia" aportou na cidade às quatro e meia da tarde; às oito horas da noite, partiria um trem para Calcutá, enorme cidade localizada no outro lado do país.
Assim que desembarcou, Fíleas Fogg foi tratar de carimbar seu passaporte e dirigiu-se à estação de trens para fazer uma refeição e comprar as passagens. Os jornais ingleses haviam noticiado que uma estrada de ferro atravessando toda a Índia havia sido terminada. Fogg calculara que o trem chegaria a Calcutá bem antes do meio-dia do dia 25 de outubro, quando um navio partiria de lá com destino a Hong Kong, na China.
Enquanto o patrão cuidava disso, Passepartout foi fazer mais algumas compras. Ele tinha esperado que a viagem de Fogg terminasse ali na índia, mas tudo indicava que o cavalheiro planejava mesmo continuar sua volta ao mundo. O francês já estava se acostumando à ideia da aventura, embora desejasse viver sossegado em Londres...
Já o detetive Fix desembarcou às pressas e foi para a central de polícia de Bombaim. Queria saber se já chegara a ordem de prisão que pedira, para poder prender o homem que acreditava ser o ladrão do banco. Porém, seria impossível que o documento chegasse tão depressa, pois também teria de vir de navio! E as autoridades nunca permitiriam que se prendesse um cidadão inglês sem uma ordem oficial.
Desanimado, ele resolveu vigiar o suspeito. Foi para a estação ferroviária.
Passepartout havia feito suas compras e passeava pela cidade, maravilhado. Passavam pelas ruas de Bombaim pessoas de todas as partes da Índia, vestidas de todas as cores. Naquele dia estava acontecendo uma espécie de procissão religiosa dos parses, indianos que eram tradicionalmente seguidores de Zoroastro. Instrumentos musicais soavam e lindas bailarinas, vestidas de ouro e prata, dançavam pelas ruas.

Zoroastro, ou Zaratustra, foi um líder religioso da Pérsia (onde hoje se localiza o Irã), que viveu vários séculos antes de Cristo.
Bramânica: referente a Brama, o deus criador do mundo e que faz parte da Trindade sagrada do hinduísmo: Brama, Vishnu e Shiva.

Ele assistiu ao desfile e então teve a ideia de visitar o pagode do Monte Malebar. Era um templo belíssimo, com detalhes de decoração bramânica; infelizmente, o pobre rapaz nem desconfiava de que a entrada de estrangeiros naquele lugar sagrado era proibida, e ninguém podia adentrar o local... sem tirar os sapatos.
Passepartout estava tão distraído olhando o templo que tomou o maior susto quando três homens saltaram sobre ele! Gritavam palavras que o pobre francês não entendia e puseram-se a bater-lhe, além de arrancar seus sapatos e suas meias.
Mas ele era alto e forte; livrou-se dos atacantes e saiu correndo loucamente...
A essa altura, estava quase na hora de o trem partir de Bombaim. Fogg, na plataforma, viu seu criado chegar às cinco para as oito, esbaforido e descalço, sem fôlego, contando o estranho caso que lhe acontecera.
— Que isso não se repita — foi só o que disse o sério inglês.
E foi instalar-se num vagão do trem, seguido pelo pobre Passepartout, desolado por haver perdido os sapatos. Fix, que estivera escondido por perto, e ouvira tudo, teve uma nova ideia para atrasar a viagem de Fogg e esperar o mandado de prisão chegar.
"Não vou segui-lo", pensou. "Vou deixar que ele vá a Calcutá e, enquanto isso, já sei o que fazer!"
E afastou-se da estação, enquanto o trem partia em direção ao coração da Índia.
A bordo do trem, Fogg reencontrou um homem que fora um de seus parceiros no jogo de cartas no navio "Mongólia": o general Francis Cromarty, militar inglês que viajava para a cidade de Benares, onde se reuniria às suas tropas.
Era um grande conhecedor do povo e dos costumes da Índia, e observava Fíleas Fogg com interesse. Desde que soubera de sua aposta e da volta ao mundo que fazia, ficava imaginando se aquele homem calado e sério teria um coração no peito...
Os dois cavalheiros conversavam no vagão, enquanto Passepartout, aborrecido, dormia com os pés descalços enrolados em uma manta.
— O senhor pode ter problemas com o que aconteceu ao seu criado — explicou o general. — O governo inglês faz questão que se obedeçam aos costumes do país, e aqui é proibido entrar calçado nos templos religiosos. Passepartout pode ser preso.
— Isso não irá atrasar minha viagem — retrucou Fogg, convicto.
Por dois dias o trem percorreu o interior da Índia, passando por aldeias e cidades diversas. Pelas janelas do trem viam-se campos cultivados, mosteiros e templos, rios e matas, estradas em que transitavam elefantes. Quando o trem parou na estação de Burhampur, Passepartout pôde afinal sair para comprar um par de sapatos. Porém ele encontrou apenas chinelas bordadas com pérolas, que lhe custaram caríssimo.
No dia 22, às oito da manhã, o trem parou e o condutor do trem disse aos passageiros que deviam descer. Fogg e Cromarty não entenderam por quê.
— Acabaram-se os trilhos! — exclamou Passepartout, olhando a estrada adiante.
O general, furioso, interrogou o condutor. Descobriu que os jornais ingleses estavam enganados: a estrada de ferro não fora terminada, faltava instalar os trilhos que iam daquela aldeia à cidade de Alahabad. Os passageiros tinham de dar um jeito de percorrer oitenta quilômetros até chegar à estação em que outro trem os levaria a Calcutá.
O problema é que os demais passageiros já sabiam daquilo e ao desembarcar alugaram carros, carretas, cavalos, pôneis, todo meio de transporte que havia por ali. Fogg, sempre sereno, convenceu o general de que haveria tempo suficiente para chegar a Alahabad e a Calcutá a tempo de tomar o navio para a China, mas... como prosseguir?
Foi Passepartout quem resolveu o problema. Passeando pela aldeia, ele viu que não conseguiria mais nenhum meio de transporte, a não ser...

— Patrão, um indiano que mora aqui perto possui um elefante domesticado.
Fogg foi conversar com o homem, que realmente estava criando aquele elefante para ser utilizado na guerra. Mas, por mais dinheiro que lhe oferecesse, ele não queria alugar o animal para transportá-los até Alahabad.

Os elefantes eram animais muito apreciados na Índia. Serviam como montaria e animais de carga para várias finalidades, inclusive para transportar soldados em batalha.

Depois de muito insistir e receber recusas, Fogg afinal disse:
— Venda-me o elefante. Pago mil libras.
Passepartout quase teve um ataque: mil libras?! Era muito dinheiro. O homem ficou interessado, mas disse que não o venderia. Fíleas foi então aumentando o preço, até chegar a duas mil libras. Nesse ponto, o dono do elefante aceitou!
Fogg pagou em dinheiro vivo, e ofereceu carona a Cromarty. Contrataram ainda um guia, um rapaz de origem parse que colocou mantas sobre o animal e dois cestos, um de cada lado, para que eles montassem. E depois de comprar algumas provisões na aldeia, lá se foram.

O condutor ia no pescoço do elefante, Fogg e Cromarty iam enfiados um em cada cesto, dos dois lados, e Passepartout ia montado no lombo, equilibrando-se como podia para não cair, sempre usando suas engraçadas chinelas bordadas.


Capítulo 4: Aventura inesperada no meio da floresta

Pensando em ganhar tempo, o guia não seguiu a estrada em que estavam sendo colocados os trilhos do trem. Tocou o elefante pelo meio da mata. Os passageiros não estavam lá muito confortáveis: Fogg e Cromarty iam balançando nos cestos, e Passepartout sacolejava sem parar no lombo do animal. Mesmo assim, ficou amigo do elefante, e de tempos em tempos oferecia-lhe torrões de açúcar.

Rajás ou marajás eram os monarcas de províncias ou regiões da Índia.

Passaram o dia todo viajando em meio ao território dominado por rajás indianos. Dormiram numa casa em ruínas naquela noite, ouvindo, a pouca distância, gritinhos de macacos e rugidos de lobos e tigres. No dia seguinte, bem cedo, partiram de novo.
Iam contornando aldeias e povoados, evitando encontrar o povo da região. Quando eram quatro horas da tarde, o elefante parou de andar, inquieto.
— O que aconteceu? — quis saber o general.
Enquanto Fogg e seu criado esperavam, o guia entrou na floresta para investigar. Voltou logo mais, explicando que havia uma procissão de sacerdotes brâmanes à frente. Todos se esconderam, curiosos, de maneira a ver o grupo passar.

Um palanquim é uma espécie de liteira ou andor, usada na Índia e na China: uma cadeira ou cama coberta e sustentada por ripas de madeira, que é carregada por homens ou animais.

Mas não podiam imaginar o que estava acontecendo. Além de sacerdotes, músicos e moradores daquela região, o cortejo levava uma estátua da assustadora deusa Kali, um palanquim carregando o corpo de um homem ricamente vestido, e guardas arrastando uma jovem mulher, adornada com ricas joias.
— O que é isso? — indagou Fogg, vendo que o general e o guia se assustavam.
— Eles estão indo para o templo de Pillaji, aqui perto. É uma cerimônia fúnebre: o homem no palanquim é um rajá, que morreu; amanhã cedo seu corpo será cremado, e a moça que é levada pelos guardas é sua viúva. Será queimada junto com ele.
 — Queimada viva? — exclamou Passepartout. — Isso é assassinato!
O guia explicou que aquele era um antigo costume da região, chamado sutty. Se a viúva de um príncipe não fosse queimada junto com o marido morto, seria tratada como mendiga pelo resto da vida. Ele conhecia a história daquela viúva, que se chamava Aouda, e fora casada à força com o velho rajá. Três meses após o casamento ele falecera, e agora ela devia morrer junto dele, embora fosse jovem e desejasse viver.
Os viajantes estavam indignados. Não conseguiam seguir viagem sabendo que logo a pobre moça seria morta daquela maneira horrível.
— E se a salvássemos? — perguntou Fogg, sem demonstrar nenhuma emoção. — Temos tempo sobrando, só precisamos estar em Calcutá no dia 25.
O general sorriu para ele, dizendo:
— Então o senhor realmente tem um coração!
Combinaram um plano para resgatar a jovem. Segundo o guia, ela deveria passar a noite presa no pagode de Pillaji; os acompanhantes da procissão costumavam festejar e beber muito. Se ficassem embriagados, seria possível entrarem escondidos no templo durante a madrugada, para libertar a prisioneira.
Deixando o elefante oculto, eles esperaram anoitecer e foram-se chegando junto ao pagode. Logo viram muitas pessoas dormindo, parecendo desmaiadas de tanto beber. Infelizmente, havia guardas bem acordados vigiando os portões dianteiros do templo.
Tentaram então dar a volta para abrir um buraco nos fundos. Estavam conseguindo tirar os velhos tijolos do muro quando um ruído avisou que havia gente chegando.
Voltaram para a mata e viram vários guardas cercarem o pagode também na parte traseira. Seria impossível forçar a entrada sem serem notados!
— Não podemos salvá-la, temos de partir — disse o general.
— Não há outro jeito — concordou o guia —, eles são muitos: se os guardas nos apanharem, nós é que seremos mortos. Vamos embora.
— Ainda não — decidiu Fíleas Fogg. — Vamos esperar até amanhã.
Passaram a noite escondidos, porém desanimados. Passepartout, que não se conformava em ver a pobre moça morrer queimada, subira em uma árvore. Dali podia ver o templo e a pira de madeira — sobre a qual haviam colocado o corpo do falecido rajá — prontinha para ser queimada pela manhã. E começou a ter uma ideia fantástica...
Quando amanheceu, os músicos começaram a bater nos seus tambores, o povo foi acordando e cercando a pira funerária, as portas do templo se abriram e os sacerdotes saíram. Dois deles trouxeram a vítima, que parecia dopada, pois mal podia andar.

Pira funerária: em muitas culturas é costume queimar os corpos das pessoas falecidas. Em português, essa prática é chamada cremação. Na região da Índia em que se passa esta história, era costume as viúvas dos mortos ilustres serem cremadas junto com os corpos dos maridos, em uma pira (fogueira).

O general e o aventureiro inglês, escondidos na mata, viram tudo e sentiram-se furiosos. O que poderiam fazer diante de todo aquele povo e de guardas armados?
A viúva foi deitada sobre a pira, junto ao corpo do rajá. Um homem trouxe uma tocha acesa e ateou fogo à madeira... O guia e o general tiveram de segurar Fogg, que queria avançar para a multidão e tentar salvar a moça assim mesmo.
Porém, naquele momento, algo inacreditável aconteceu: o falecido rajá levantou-se no alto da pira, tomou a esposa nos braços e desceu de lá de cima, entre os gritos de espanto de todos. Estava vivo?! Mas como?!
Enquanto o povo o olhava, o rajá correu para o meio da floresta e se aproximou dos aventureiros, carregando a jovem desmaiada. E falou, com uma voz muito familiar:
— Vamos fugir!
Somente então eles perceberam que era Passepartout!  Durante a madrugada, enquanto todos olhavam o pagode, ele fora até a pira e vestira as roupas do príncipe morto, esperando o momento certo para tirar a moça de lá...
Mais que depressa, eles colocaram Aouda em um dos cestos, subiram no elefante e o guia tratou de embrenhar-se na floresta, a grande velocidade.
Não demorou muito para perceberem que eram seguidos: homens gritando se aproximavam, flechas começaram a ser disparadas sobre eles, e logo ouviram o disparo de balas de revólver. Os perseguidores estavam, porém, a pé, e o elefante desandou num trote que logo os afastou dali. Estavam salvos!
Quando o dia clareou de vez, já se encontravam longe. A moça ainda dormia, mostrando que realmente fora drogada. Por volta de dez horas da manhã chegaram enfim a Alahabad, cidade que ficava na confluência do rio Ganges com o rio Jumna.
Fogg levou-a para a estação de trens e mandou Passepartout ir à cidade comprar algumas roupas para ela. Era ainda a manhã do dia 24. Havia tempo de sobra para chegarem a Calcutá e tomar o navio, ao meio-dia do dia seguinte!
Antes que o trem partisse, o inglês pagou ao guia parse o que haviam combinado para que ele os levasse a Alahabad. Depois, disse-lhe:
— Paguei pelo seu trabalho, mas não paguei pela sua lealdade. Aceita o elefante como um presente?
O homem não sabia o que dizer. Um elefante, na Índia, valia uma fortuna!
 Passepartout, contente com a generosidade do patrão, que estava cada vez mais subindo no seu conceito, insistiu para que o rapaz aceitasse. Deu ao animal mais um torrão de açúcar e o elefante, feliz, agarrou-o com a tromba e levantou-o até o alto!
O trem ia partir. Fogg, Passepartout e Cromarty despediram-se do guia e embarcaram, instalando a jovem viúva num dos compartimentos.
Quando acordou, ela não podia acreditar que fora salva. Agradeceu várias vezes a Fogg e a Passepartout, que a tratavam com toda a gentileza. Segundo o general, ela precisava sair da índia o mais depressa possível, pois enquanto estivesse em território indiano poderia ser recapturada pela poderosa família do rajá. Fogg propôs-se a levá-la com eles para Hong Kong, e Aouda aceitou, pois tinha um parente naquela cidade.
Após deixar Alahabad, o trem fez uma parada em Benares, onde o general Cromarty iria encontrar seu regimento de soldados. Ele se despediu afavelmente de todos, tendo-se tornado grande amigo deles. E o trem seguiu viagem.

O rio Ganges nasce no Himalaia, a cadeia de montanhas mais altas do mundo, banha várias cidades da Índia e desemboca em um delta no golfo de Bengala. É considerado sagrado pelos indianos.

Atravessou o vale do Ganges, e os viajantes puderam ver o chamado Rio Sagrado , em cujas águas tantos homens e mulheres iam banhar-se.
No dia seguinte, às sete horas da manhã, o trem parou na estação de Calcutá. Haviam chegado no dia 25, o dia previsto para embarcarem no navio "Rangoon", que partiria ao meio-dia para a China. A próxima parada seria Hong Kong!


Capítulo 5: O detetive ataca novamente

Contudo, uma surpresa desagradável os esperava na Cidade Negra, como Calcutá era chamada. Assim que desembarcaram, um policial os intimou a acompanhá-lo. Sem saber o que estava acontecendo, Fogg concordou e lá se foram os três — ele, Passepartout e a jovem Aouda — em uma carruagem, que os levou a uma casa com janelas gradeadas. Ali, foram informados de que, às oito e meia da manhã, deveriam comparecer diante de um juiz.
— Estamos presos! — exclamou Passepartout.
— É minha culpa — disse Aouda, achando que os amigos seriam acusados de impedir os sacerdotes de Pillaji de queimá-la com o rajá.
— Deve ser algum engano — respondeu Fíleas, impassível. Quando finalmente foram levados à sala do juiz, um escrivão chamou os nomes de Fíleas Fogg e de seu criado. Entraram três sacerdotes no recinto e o juiz disse:
— Essas testemunhas acusam o criado do senhor Fogg de profanar um lugar sagrado na índia.
— Pois então sou culpado — disse o francês, achando que os sacerdotes eram os mesmos que levavam Aouda à força para a pira funerária —, mas não podia deixar esses três queimarem aquela senhora em frente ao pagode!
O juiz fez cara de quem não estava entendendo nada.
— Quem ia queimar quem? Em Bombaim?
— Não, em Pillaji!
— esclareceu Passepartout.
— Mas estamos falando do templo de Malebar, em Bombaim! E eis aqui a prova do crime — explicou o magistrado, colocando sobre a mesa um par de botas.
— Meus sapatos! — disse ele, finalmente entendendo do que se tratava.
A verdade é que o detetive Fix desejara aproveitar a encrenca em que o criado de Fogg se metera em Bombaim e embarcara os três sacerdotes de Malebar no trem seguinte para Calcutá conseguindo uma ordem para prender Passepartout por ter entrado calçado no pagode. Não havia ainda recebido o mandado de prisão para Fogg, mas bastava-lhe reter os viajantes por um tempo em Calcutá e esperar que chegasse.
Como nossos aventureiros tinham parado no meio da floresta para o salvamento de Aouda, o detetive e os sacerdotes haviam chegado antes deles à cidade, e Fix estivera alarmado com a demora, achando que haviam fugido.
Mas, assim que viu Fogg e os companheiros chegarem, pôs seu plano em ação.
Já que Passepartout havia-se declarado "culpado", o juiz o condenou a uma multa e a quinze dias de prisão. E, por ser Fogg responsável por ele, condenou o inglês a uma semana de prisão.
O criado e Aouda ficaram desesperados; seu navio partiria para Hong Kong ao meio-dia, e eles não poderiam partir após a condenação à prisão! A não ser que...
Com a maior calma do mundo, Fogg levantou-se e declarou:
— Pago a nossa fiança.
Fix, que estava num canto da sala assistindo a tudo, ficou gelado. Era direito de qualquer prisioneiro pagar uma fiança em dinheiro para ficar em liberdade... O juiz, de acordo com a lei, disse que aquilo podia ser feito, mas a quantia seria muito, muito alta.
— São 1.000 libras de fiança para cada um — decidiu o magistrado.
Sem discutir, Fogg pegou o saco de viagem que Passepartout levava e pegou lá dentro um maço de dinheiro, que entregou ao escrivão: 2.000 libras!
As autoridades não tiveram outro jeito senão aceitar a fiança e libertar os condenados. Fogg, Aouda e Passepartout que pelo menos recuperou os seus sapatos — saíram de lá e foram depressa tomar uma carruagem para o porto, de onde o "Rangoon" ia partir, em uma hora. Eram onze da manhã... O detetive Fix, furioso, viu os três embarcarem.
— Bandido! — resmungou. — Vai gastar tudo o que roubou do banco antes que eu o prenda. Mas não faz mal: vou segui-lo, nem que tenha de ir até o fim do mundo!
E tratou de comprar passagem no navio também, depois de deixar uma mensagem para que a ordem de prisão contra Fogg fosse enviada para Hong Kong.
O "Rangoon" levantou âncora e partiu, começando a percorrer o golfo de Bengala e a contornar as ilhas da Indonésia, passando pelo estreito de Málaca para chegar ao Mar da China. Fix permaneceu em seu camarote, evitando encontrar com os viajantes. Tinha esperança de prender Fogg em Hong Kong, cidade que pertencia ao Império Britânico: se eles enveredassem pelo Japão ou pela América, ele não teria autoridade para prendê-los, pois estaria fora da jurisdição inglesa. Rezava para que o mandado estivesse esperando por eles em Hong Kong; caso contrário, ele teria de fazer alguma coisa, qualquer coisa, para atrasar novamente a viagem de Fogg.
Aouda se mostrava cada vez mais agradecida a Fíleas e a Passepartout, por terem-na salvado e estarem cuidando dela até chegar em Hong Kong, onde contava encontrar seu parente e ser acolhida por ele — já que não podia voltar à Índia. Fix não entendia quem era aquela mulher e por que o inglês a incluíra em sua viagem. Imaginava até que ela tivesse sido raptada, o que talvez lhe possibilitasse prendê-los assim que chegassem.
Precisava de informações. E o jeito de obtê-las seria, mais uma vez, interrogar Passepartout... Decidido a fazer isso, deixou seu camarote e foi ao convés.

O convés é a parte do navio que fica descoberta, onde os passageiros podem passear e olhar o mar.

Logo encontrou o francês, que ficou muito intrigado por encontrar Fix ali também. O detetive logo puxou conversa, fingindo estar surpreso com o encontro, e ficou sabendo de toda a aventura na Índia. Logo percebeu que, se Aouda não fora raptada, não serviria como desculpa para que Fogg fosse detido em Hong Kong.
Após a conversa com Fix, Passepartout ficou desconfiado. Por que aquele homem não lhe dissera antes que ia à China? Devia haver algum motivo para que ele fizesse a mesma viagem que eles... e, como o pobre criado não soubesse dos detalhes do roubo do banco em Londres, logo achou que o detetive era um espião, enviado pelos parceiros de seu patrão para vigiar a viagem deles em torno do mundo. Ficou zangado, pensando que os apostadores não confiavam na palavra de seu amo. Resolveu não dizer nada a este, para não preocupá-lo; mas pôs-se a vigiar Fix, assim como ele os vigiava.

Cingapura é uma cidade estado localizada ao sul da Malásia. Fica a 2500 quilômetros de Hong Kong.

No dia 30 de outubro, quarta-feira, o "Rangoon" passou o estreito de Málaca, próximo à ilha de Sumatra, na Indonésia. E na madrugada do dia seguinte aportou em Cingapura para abastecer-se de carvão. O navio estava adiantado, o que ajudava os planos de Fogg.
Durante essa viagem, além das desconfianças sobre o detetive, Passepartout começava a desconfiar também de que a bela Aouda olhava para seu salvador com algo mais do que apenas gratidão. O inglês, porém, continuava tão impassível como sempre: ninguém seria capaz de adivinhar o que ele sentia, se é que sentia alguma coisa.
Infelizmente, a continuação da viagem foi ameaçada por uma terrível tempestade, que agitou o mar e fez o navio recolher as velas e diminuir muito sua velocidade. Todos calculavam que a chegada à China iria atrasar quase um dia, ou mais.
Fix estava achando ótimo o atraso. Passepartout se descabelava de preocupação; Aouda tentava consolar Fogg, mas ele nem se abalava; era como se a tremenda borrasca não passasse de uma chuvinha sem importância.
Afinal a tempestade passou; o "Rangoon" atracou à uma hora da tarde no porto de Hong Kong. Era o dia 6 de novembro, e o navio em que eles embarcariam — o "Carnatic" — tinha sua partida marcada para o dia 5. Estavam atrasados em um dia...
Porém, quando Fogg foi informar-se, descobriu que o Carnatic tivera de consertar uma caldeira e retardara sua partida para o dia 7 pela manhã!
O criado ficou feliz da vida, e Fogg foi tratar de levar Aouda para um hotel. Depois saiu para tentar encontrar o parente dela, que era um rico negociante muito conhecido por ali. Para sua surpresa, porém, descobriu que o homem havia-se mudado fazia alguns anos, e devia agora viver na Holanda.
Aouda não sabia o que fazer. O cavalheiro inglês, então, ofereceu-lhe continuar acompanhando-os em sua volta ao mundo até chegar à Europa, onde encontrariam seu parente com mais facilidade. Com relutância, ela aceitou; e Fogg mandou Passepartout ao porto, para comprar três passagens no "Carnatic" com destino a Yokohama, no Japão.

O jovem francês lá se foi, satisfeito ao saber que a bela senhorita continuaria fazendo-lhes companhia. Comprou as passagens e soube que os reparos do navio haviam terminado; o "Carnatic" zarparia de Hong Kong naquele mesmo dia, às 8 da noite.
Ele ia voltando para o hotel, a fim de dar a boa notícia ao patrão, quando encontrou Fix mais uma vez. Desesperado ao ver que o suposto ladrão ia escapar-lhe novamente, o detetive tinha resolvido contar tudo ao criado, esperando que ele o ajudasse a reter o patrão em Hong Kong até que chegasse a ordem de prisão.

O ópio é uma substância entorpecente, extraída da papoula. Mascado ou fumado, produz euforia e, depois, um sono repleto de sonhos. Na época, não era proibido e podia ser fumado em casas especializadas. O ópio foi motivo de guerra entre a China e a Inglaterra (1839-42), que tomou posse de Hong Kong nessa ocasião.

Os dois se dirigiram a uma espécie de bar, um local usado por pessoas acostumadas a fumar ópio, onde o detetive ofereceu vinho ao rapaz. E logo depois contou-lhe a verdade: que ele era um agente da polícia em perseguição a Fíleas Fogg como suspeito do roubo no Banco da Inglaterra.
Passepartout não podia acreditar. E ficou indignado com a proposta de Fix.
— Se não quiser ser preso como cúmplice do ladrão, deve ajudar-me a reter o homem aqui em Hong Kong até que chegue o mandado de prisão.
— Jamais! — respondeu o rapaz, furioso. — Meu patrão é um homem honesto, e eu não vou traí-lo!
Fix fingiu aceitar a palavra do outro e lhe ofereceu mais uma bebida, além de um cachimbo dos que havia no bar. Infelizmente para Passepartout, era um cachimbo de ópio; e, assim que experimentou fumar aquilo, o pobre rapaz caiu no sono. O detetive pagou toda a despesa e o deixou ali, adormecido.


Capítulo 6: Fogg enfrenta um tufão e Passepartout vira palhaço

Enquanto Passepartout era atraiçoado por Fix, sem desconfiar de nada, Fíleas Fogg e Aouda passeavam por Hong Kong e faziam compras. Depois foram jantar no hotel e recolheram-se aos seus quartos, sem que o criado do cavalheiro aparecesse.
Na manhã seguinte, os dois se dirigiram ao porto e... infeliz descoberta! Não encontraram nem Passepartout nem o navio. Somente então Fogg soube que o "Carnatic" partira na noite anterior, e ainda encontrou-se com Fix, que se fez de amigo, explicando que o navio largara para Yokohama doze horas antes. O detetive estava satisfeito, achando que o cavalheiro inglês teria de esperar uma semana até que outro navio partisse para o Japão, e haveria tempo para a ordem de prisão chegar.
 Fogg, porém, tinha outras ideias. Foi para as docas, perguntar se algum barco o transportaria ao Japão. Encontrou o dono de um iate que parecia pronto para partir. — Preciso estar em Yokohama no dia 14, para pegar o vapor que vai para São Francisco, o "General Grant". Pode levar-nos?
— Meu iate não aguenta uma travessia tão longa; mas, se o senhor quiser que eu o leve a Xangai, poderá tomar lá mesmo navio que segue para a América: o "General Grant" sai de Xangai no dia 11, e somente então segue para Yokohama.
Prometendo ao dono do iate pagar-lhe muito bem pela viagem, Fogg combinou a partida de Hong Kong para dali a uma hora. E ainda ofereceu carona a Fix, que estava quase sapateando de raiva... mas aceitou!
O único problema era o sumiço de Passepartout. Aouda estava inconsolável com o desaparecimento do rapaz, e Fogg deixou avisos na polícia e no Consulado francês, pedindo, se o criado fosse encontrado, que o mandassem para a Europa.
Às três da tarde do dia 7, o iate "Tancadera" enfunou as velas e partiu, com Fogg e Aouda ainda olhando o cais para ver se o francês Aparecia. Fix, que embarcara também, dava graças a Deus por ele não aparecer, ou todos saberiam que o detetive o havia dopado no bar...
Deixando Hong Kong, o iate se aventurava pelo mar da China, enfrentando ondas revoltas e ventos furiosos. Tinham quatro dias para chegar a tempo de embarcar.
Durante a tempestuosa viagem, Aouda e Fogg imaginavam o que teria acontecido a Passepartout. Achavam que ele poderia ter descoberto, na última hora, que o "Carnatic" iria partir doze horas antes, e esperavam que tivesse embarcado; assim, poderiam encontrá-lo em Yokohama. Já Fix se preocupava com outra coisa: era Fogg quem estava pagando sua passagem e sua estadia naquele barco, e ele se sentia humilhado por estar devendo favores a quem considerava um ladrão...

O Trópico de Câncer é uma das duas linhas imaginárias paralelas ao Equador, que circundam o globo terrestre. O Trópico de Capricórnio fica no hemisfério sul e o de Câncer, no norte.

No dia 9, o "Tancadera" já havia passado pela linha do Trópico de Câncer quando o patrão do iate avisou que se aproximava um tufão. Os marinheiros arriaram as velas e se prepararam para o vendaval, que veio com toda a força.
O pequeno navio navegou para o norte, arrastado por ondas enormes, que molhavam a todos e faziam Fix resmungar. Mas Aouda e Fogg, sem demonstrar medo, ficaram juntos o tempo todo enquanto o vendaval soprava sem cessar.
Decidido a levar Fogg para Xangai, o capitão do "Tancadera" enfrentou as ameaças do mar sem naufragar, até que finalmente a tempestade terminou.
Infelizmente haviam perdido muito tempo, e tinham apenas um dia para chegar a Xangai antes que o vapor partisse, às sete horas da manhã do dia 11.
Quando, finalmente, iam se aproximando de Xangai, viram ao longe o grande navio deixando o porto para cruzar o oceano Pacífico.
— Nós o perdemos! — exclamou o capitão, desanimado.
— Ainda não — disse Fogg, tendo uma ideia. — Coloquem a bandeira a meia haste e disparem um tiro de canhão, como quem pede ajuda!
E os marinheiros correram a fazer o que ele sugeria.
Mas o que havia realmente acontecido a Passepartout? Sem nem desconfiar de que fora traído por Fix, o pobre rapaz dormira demais, por efeito do vinho e do ópio. Quando despertou, já era noite e a única coisa de que ele se lembrava era que deveria estar a bordo do "Carnatic".
Saiu correndo, ainda zonzo, para o porto; subiu a prancha para a amurada do navio no momento exato em que ele estava partindo. E dormiu de novo.
Apenas no dia seguinte, quando o vapor já estava a muitos e muitos quilômetros da China, foi que ele acordou e teve consciência do que acontecera e da armadilha que Fix lhe armara. Percorreu o navio inteiro à procura do patrão, e lembrou-se de que não havia avisado Fogg sobre a mudança no horário da partida. Por isso, acreditava que seu patrão havia perdido o navio e certamente também perderia a aposta, tudo por culpa da traição do detetive!
Mais um problema transtornava o pobre criado. O saco de viagem ficara com Fogg, no hotel, e ele se encontrava absolutamente sem dinheiro. Sua passagem no "Carnatic" estava paga, mas o que aconteceria quando o navio chegasse ao porto? Estaria sozinho, sem um tostão, do outro lado do mundo!
Quando o navio ancorou no Japão, no dia 13, ele teve de desembarcar na Terra do Sol Nascente. Andou por Yokohama apreciando a multidão vinda de todas as partes do globo, as lojas e bazares, os restaurantes e as casas japonesas. Não sabia o que fazer. Afinal, depois de andar por um dia, teve a ideia de vender suas roupas europeias, vestir-se como o povo do local e tentar arrumar algum tipo de trabalho para sobreviver.
Foi para o porto, à procura de um navio que fosse para a América, onde pudesse empregar-se como cozinheiro ou criado, em troca da passagem. A caminho, viu um cartaz que anunciava um grupo de acrobatas japoneses que iriam apresentar-se pela última vez antes de partir para os Estados Unidos.
Pensando que seria mais fácil chegar à Europa partindo da América, o jovem foi pedir emprego aos acrobatas. Embora o dono da companhia não precisasse de criado, acabou contratando o francês como palhaço.
 Eles iam partir para os Estados Unidos dali a uma semana e estavam preparando seus últimos espetáculos em uma grande barraca circense no centro da cidade. O espetáculo daquela tarde, que constava de malabarismo, acrobacias, mágicas e outros truques terminaria com uma sensacional pirâmide humana, formada por dezenas de ginastas. Como um dos acrobatas havia se demitido, o dono mandou que Passepartout o substituísse, ajudando a formar a base da pirâmide.
E lá estava o rapaz sob uma pirâmide feita de acrobatas montados uns nos outros, com centenas de espectadores aplaudindo, quando olhou para a plateia... e ali, no meio de toda aquela gente, avistou seu patrão acompanhado da bela Aouda!
Com um grito de satisfação e espanto, ele correu para Fogg, sem se lembrar de que estava sob dezenas de ginastas... e a pirâmide despencou inteira! Mas o francês só estava preocupado em alcançar seu patrão, que também o vira. Finalmente haviam-se encontrado.
Não perderam tempo conversando. O navio ia partir dali a pouco para São Francisco. Os três correram feito loucos para o porto, onde chegaram às seis e meia, bem na hora em que o vapor erguia âncora e largava!
Após embarcarem, Passepartout contou ao patrão e à jovem indiana as suas desventuras, sem esquecer de mencionar a traição de Fix. Aouda contou ao criado a viagem no "Tancadera" e a tentativa desesperada de embarcarem no "General Gram". Ao ver o iate disparar um tiro e colocar a bandeira a meia haste, o vapor foi até eles e permitiu que Fogg e sua companheira embarcassem. Assim, no tempo previsto, eles haviam seguido de Xangai para Yokohama.
Chegando ao porto japonês em 14 de novembro, descobriram que o francês viajara no "Carnatic" e desembarcara na cidade. Com pouco tempo antes que o vapor partisse de vez para a América, Fíleas e Aouda andaram pela cidade tentando de toda forma encontrar o criado. E, por acaso, haviam entrado na barraca dos acrobatas, onde deram com ele vestido de palhaço e servindo de base à pirâmide!
Agora estavam os três juntos de novo, a bordo do rápido navio; Fogg tinha certeza de que estaria em São Francisco no começo de dezembro. De lá, restar-lhe-ia atravessar os Estados Unidos de trem, indo para Nova York, onde tomaria outro navio para a Inglaterra. Chegaria a tempo de ganhar a aposta, com certeza!
O que ele não sabia era que o detetive não desistira: ao chegar em Yokohama, Fix fora para o Consulado inglês, onde encontrara à sua espera o famoso mandado de prisão contra Fogg! Infelizmente agora ele não se encontrava mais em território britânico, e por isso não tinha autoridade para prender o suspeito, a não ser que conseguisse uma ordem de extradição — o que levaria dias, talvez semanas.
Tomou então a decisão de continuar seguindo o cavalheiro até que pudesse obter sua extradição. Comprou passagem no "General Grant" e embarcou antes de Fogg, tratando de ficar bem escondido quando viu que Passepartout havia sido encontrado. Sua situação mudara, pois todos, agora, não podiam deixar de saber quem ele era.


Capítulo 7: Uma surra e um tumulto

Durante a última quinzena de novembro, o navio "General Grant" atravessou o oceano Pacífico, indo para a costa oeste dos Estados Unidos. Foi uma travessia tranquila, provando que aquele oceano era mesmo pacífico...

Chamamos antípoda uma região que fica no extremo oposto do globo terrestre em relação a alguma outra região. Por exemplo, o Brasil e o Japão são antípodas. Já o local antípoda a Londres fica no oceano Pacífico, e assim por diante.

Nove dias após deixarem Yokohama, em 23 de novembro, o navio passou pelo meridiano exatamente antípoda a Londres. Fogg estava viajando há 52 dias, restando-lhe apenas 28 dos oitenta dias planejados para a viagem. Encontrava-se exatamente no meio do caminho, no extremo oposto da Terra; mas havia percorrido já dois terços de sua viagem, por causa dos desvios que tivera de fazer, pelos mares Mediterrâneo, Vermelho, da Arábia e da China.
— Agora — dizia ele a Aouda — resta-nos apenas a parte mais fácil da viagem.
Pelo menos era o que ele achava...
Quanto a Passepartout, naquele dia seu relógio — que ele se recusava a acertar — quase marcou a hora certa! Na verdade, estava adiantado 12 horas, pois haviam percorrido metade do mundo, e, se ali no Pacífico era meio-dia, em Londres seria meia-noite...

A proa é a parte dianteira de um navio; a popa é a parte traseira.

Logo no começo da travessia do Pacífico, o francês encontrou Fix a bordo, na proa do navio. Não perdeu tempo e caiu de socos sobre ele, dando-lhe uma bela surra. Fix tentou defender-se, mas acabou apanhando sem reclamar.
— Podemos conversar, agora? — disse o detetive, todo dolorido pela sova. — Sei que eu mereci apanhar, mas daqui para a frente tudo será diferente. Não vou mais tentar atrapalhar a viagem de seu amo, em vez disso vou ajudá-lo a chegar a Londres.
— Por que faria isso? — estranhou Passepartout.
— Porque o quanto antes o Senhor Fogg chegar à Inglaterra mais depressa saberemos se ele é realmente um bandido ou um homem honesto. Podemos ser amigos?
Ainda furioso, o criado de Fíleas respondeu:
— De jeito nenhum! Ao primeiro sinal de traição eu torço o seu pescoço.
Assim, pelo menos, não houve mais brigas entre eles. E tão previsível foi o restante da viagem que, no dia 3 de dezembro, às sete horas da manhã, chegavam a São Francisco, nos Estados Unidos da América.
Passepartout acreditava que encontraria nos Estados Unidos um cenário do Velho Oeste, com aventureiros armados em busca de ouro. Em vez disso, encontrou uma cidade grande, civilizada, repleta de veículos e de negociantes.  
Logo ao chegar, Fogg ficou sabendo que o trem para Nova York sairia às seis horas da tarde. Alugou então uma carruagem e foi, com a moça e o criado, para um hotel tão agradável quanto os hotéis de Londres, onde fizeram uma boa refeição.
 Depois, Fogg resolveu fazer um passeio com Aouda, enquanto Passepartout ficava no hotel, pensando se deveria comprar armas ou não, pois estava ainda certo de que o território americano era muito perigoso e cheio de facínoras. E, mal o cavalheiro inglês e sua companheira saíram, encontraram-se cara a cara com Fix!
O detetive fez de conta que nada havia acontecido no Oriente Médio e na Ásia; disse que iria fazer o mesmo caminho que eles de volta à Europa e pediu-lhes permissão para acompanhá-los no passeio.
Fogg, que sabia muito bem o que o detetive queria, fingiu não saber de nada e aceitou sua companhia. E foram passear pelas apinhadas ruas de São Francisco.
Infelizmente, naquele dia algo tornava as ruas mais cheias que de costume: estava acontecendo um comício político, com dois homens enfrentando-se. E os partidários de um e de outro não paravam de arrumar brigas no meio do povo.
Carregavam cartazes dos dois adversários, berravam seus nomes, jogavam objetos uns nos outros e batiam em quem quer que lhes aparecesse pela frente. Fix e Fogg logo viram que tinham de sair das ruas para evitar encrencas. Porém era tarde demais... ao tentar escapar da multidão, viram-se entre dois grupos que se agrediam a murros. Tentando proteger Aouda, os dois se dispuseram a bater em quem os atacava. Foi então que um americano alto e ruivo deu um enorme soco na cabeça de Fix, achatando seu chapéu e deixando-o zonzo. Fogg enfrentou o americano, apresentou-se e perguntou como o outro se chamava.
— Coronel Proctor.
— Pois ainda nos encontraremos e acertaremos as contas, coronel.
E tratou de ajudar Fix a levantar-se e a tirar Aouda do meio da confusão. Quando conseguiram sair de lá, estavam os dois com as roupas rasgadas, e Fix todo inchado pelo soco de Proctor. Tiveram de ir a uma loja de roupas para livrar-se dos temos rasgados e vestir-se decentemente.
Quando voltaram ao hotel, encontraram Passepartout, que havia comprado vários revólveres. O francês ficou furioso ao ver Fix, mas Aouda explicou-lhe que o detetive os havia ajudado e contou o acidente com o coronel, com quem Fogg parecia disposto a duelar. O criado acalmou-se, e todos se prepararam para ir embora.
 Na estação de trem, Fíleas indagou qual o cargo que os tais políticos disputavam com tanta emoção e tumulto. Surpreso, soube que um deles seria eleito... juiz de paz!
O trem deixou São Francisco às seis da tarde e começou a percorrer a linha férrea que ia de um oceano a outro, cortando ao meio os Estados Unidos da América.


Capítulo 8: Através do Oeste americano

A estrada de ferro americana era uma obra de engenharia impressionante. De São Francisco, na Califórnia, ia até Ogden, próximo a Salt Lake City. De lá, outra ferrovia ia para Omaha. E, do centro dos Estados Unidos, a linha férrea seguia para diversos destinos, inclusive Nova York. Dessa forma, cortando desertos, montanhas, pradarias e cidades, o trem levaria sete dias para atravessar o país. Pelos cálculos de Fogg, chegariam a Nova York dia 11, a tempo de tomar um navio que partiria para Liverpool.

Salt Lake City significa precisamente Cidade do Lago Salgado.

Fíleas, Aouda e Passepartout — acompanhados por Fix, que não desgrudava deles — instalaram-se num vagão, e a viagem começou. O primeiro dia se passou tranquilamente, apesar de estar nevando, com algumas paradas em pequenas estações. À noite, para dormir, abriram-se leitos embutidos que sumiam durante o dia.
No dia seguinte, à tarde, uma grande manada de búfalos se pôs a atravessar a linha férrea. O maquinista tentou avançar, mas eram mais de 10.000 animais e, se não parasse, o trem poderia descarrilar. Os passageiros não tiveram outro jeito senão ficar admirando a impressionante passagem dos búfalos, que durou mais de três horas.
Somente à noite o trem pôde continuar sua marcha.
Pela manhã haviam chegado à região do Grande Lago Salgado, onde ficava a cidade de Salt Lake. E à tarde o trem parava na estação de Ogden. Ali os passageiros desembarcaram para tomar o trem que os levaria a Omaha, que partiria às seis horas.
O terreno que iam atravessar em seguida passava pelas Montanhas Rochosas e atravessava regiões selvagens e perigosas. O tempo piorou, e Passepartout se preocupava com a demora que a neve poderia acarretar na viagem de seu patrão.
Fogg continuava sem demonstrar a menor inquietação. Aouda, porém, estava muito agitada. Aconteceu que, numa das paradas do trem, ela vira, pela janela, aquele americano violento que atacara Fix em São Francisco: o Coronel Proctor estava a bordo: Não desejando falar disso a Fíleas, contou ao criado francês e ao detetive.
Fix e Passepartout perceberam que tinham de impedir, a todo custo, que Fogg visse o coronel no trem. Com seus pensamentos de honra e cavalheirismo, certamente desafiaria o homem para um duelo. E, quer vencesse, quer perdesse, isso iria arruinar suas possibilidades de ganhar a aposta.
O detetive teve uma ideia para impedir que Fogg deixasse o vagão que ocupavam: sugeriu que Passepartout comprasse um baralho, e convidou o inglês para jogar cartas. Fíleas, que adorava o baralho, aceitou. E o tempo foi passando...
Quando estavam terminando a travessia das Montanhas Rochosas, porém, o trem parou de repente. Alguns passageiros desceram querendo descobrir qual seria o problema; para sossego de Aouda, Fogg pediu a Passepartout que fosse investigar.
O maquinista e o condutor do trem explicaram que haviam encontrado um sinal de perigo, avisando que uma ponte, alguns quilômetros à frente, não era segura.

Uma ponte sustentada por colunas, das quais ela pende por meio de cabos suspensos.

Era uma ponte pênsil sobre um rio de águas revoltas: alguns de seus cabos estavam arrebentados. O peso do trem, mais o dos passageiros, sobre ela terminaria de derrubá-la. O jeito seria todos desembarcarem e andarem até outra estação, distante uns trinta quilômetros, para esperar outro trem. Mas os viajantes não estavam dispostos a andar tanto no meio da neve, e alguém veio com outra solução.
Um dos passageiros americanos sugeriu que o trem se lançasse a toda velocidade pela linha que acompanhava a ponte. Acreditava que, levado pela inércia, o trem inteiro atravessaria o abismo, com ou sem ponte.

Inércia é a resistência que todo corpo tem a mudar seu estado de movimento. Se um veículo está correndo, demora para parar por causa da inércia, que o faz continuar movendo-se.

Passepartout ficou de boca aberta com a audácia do homem. A maioria dos passageiros que desembarcara queria experimentar o método sugerido, inclusive o tal Coronel Proctor, um dos mais furiosos. Para o francês, seria bem mais prudente se os passageiros atravessassem a ponte a pé e o trem tentasse passar depois... mas ninguém quis ouvir a sua sugestão. Convenceram o maquinista a fazer a tentativa, e no final até o próprio Passepartout acreditou que fosse possível.
Todos voltaram ao trem. O maquinista fez a locomotiva recuar um pouco, e retomou a marcha na maior velocidade possível. Quando se aproximou do abismo cortado pela ponte, o trem estava a mais de 100 quilômetros por hora! E voou de uma margem a outra, sem diminuir a velocidade...
Só vários quilômetros adiante foi que o maquinista pôde fazer o veículo voltar à velocidade normal. Então viram que a ponte havia desabado depois de sua passagem!
Haviam transcorrido já três dias de viagem, e tudo indicava que chegariam ao destino na hora prevista. Estavam atravessando as terras do estado de Nebraska, faltando pouco para Omaha, quando nova encrenca sucedeu.
Fogg e Fix continuavam jogando cartas; um homem os viu da porta do compartimento e resolveu dar palpites no jogo. Quando Fíleas se voltou... viu que era o Coronel Proctor, o americano fanfarrão com quem esperava duelar um dia!
Os dois discutiram, e Proctor se mostrou ainda mais mal-educado. Fix exclamou:
— Quem tem de entender-se com o coronel sou eu, que fui agredido por ele!
— Sinto muito, mas ele acaba de insinuar que eu não sei jogar cartas, portanto acaba de me ofender, e desejo tirar satisfações — disse calmamente Fogg.
Apesar de Aouda, Fix e Passepartout tentarem acalmar os dois, não houve jeito: estavam se aproximando da estação em uma cidadezinha, e ambos combinaram que iriam desembarcar no local e bater-se em duelo.
Fogg pediu a Fix que fosse sua testemunha no duelo, e depois pôs-se a jogar cartas com a maior calma do mundo, enquanto Aouda se desesperava. Quando o apito do trem avisou que se aproximavam da cidadezinha em questão, levantou-se...
Mas ele e o coronel, que já se aprontavam para desembarcar, tiveram de mudar seus planos, pois o condutor avisou que o trem estava com vinte minutos de atraso e que, para recuperar o tempo, não pararia na tal estação.
Se queriam duelar, teriam de fazer isso num dos vagões, com o trem em movimento. Como estavam decididos a terminar com aquele assunto, os dois trataram de ir para o último vagão, cada um com um revólver, prontos a ver qual deles iria sobreviver...
Fogg e Proctor entraram no comprido vagão e fecharam a porta. Iriam esperar para disparar um contra o outro ao primeiro apito do trem. Fora do vagão, o coração de todos batia forte de emoção. E foi então que se ouviram gritos e tiros.
Porém, coisa estranha! Os tiros não vinham de dentro do vagão. Vinham de fora! O trem estava sendo atacado por uma cavalgada dos índios Sioux, que disparavam tiros de espingarda contra a locomotiva!
O duelo foi suspenso, e todos os que estavam armados se dirigiram às janelas, de onde começaram a atirar nos índios. Estes já estavam abordando o trem, e haviam ferido o maquinista e o foguista. Sem saber como mexer nos controles para parar a locomotiva, um índio havia aberto a válvula de vapor, e a composição desandara a correr com maior rapidez ainda, atingindo velocidade vertiginosa!
Até Aouda tratou de pegar um dos revólveres que Passepartout comprara e se pôs a disparar pela janela quando algum índio se aproximava e tentava subir no trem.
Fogg viu que a situação era insustentável. Estavam perto da cidade de Kearney, onde havia um forte; mas se o trem não parasse antes que chegassem lá, todos seriam mortos pelos índios e não haveria tempo para que os soldados os socorressem.
Ouvindo o que seu patrão dizia, Passepartout tomou uma decisão. Iria parar aquele trem, de qualquer jeito! E, lembrando-se de quando fora ginasta, abriu uma porta e começou a se arrastar por baixo dos vagões, indo para a locomotiva.
Conseguiu chegar ali e tentou desengatar os vagões da máquina que os puxava. Não foi fácil, mas os solavancos do trem o ajudaram. Livre do peso, a locomotiva partiu mais depressa ainda, e o trem continuou a rodar, ainda levado pela inércia, mas diminuindo a velocidade até parar.
Foi a conta! Pararam quase na estação de Kearney, e os soldados do forte; ouvindo os tiros, logo montaram seus cavalos e correram em auxílio dos passageiros.
Os índios, ouvindo a cavalaria, trataram de fugir. E todos puderam descer na estação, a salvo... Bem, não todos. Quando foram contar quantas pessoas estavam presentes, descobriu-se que faltavam três viajantes... inclusive Passepartout.
Estaria morto? Ou fora levado prisioneiro pelos índios? Decidido a encontrar seu criado, ou a morrer tentando, Fogg avisou que iria voltar, perseguindo a trilha dos Sioux, para descobrir o que fora feito do francês.
Fix, que jurara não se separar de seu suspeito, queria ir também.
Mas Fíleas o fez prometer que ficaria junto de Aouda, e que a levaria para a Europa, caso algo lhe acontecesse. Sem outra escolha, o detetive concordou.
O capitão do forte designou um sargento e trinta soldados para acompanhar Fogg, e logo mais os 32 montavam e partiam na trilha dos atacantes.
As horas que se seguiram foram insuportáveis. Caía a neve, e Aouda pensava em Fogg, que considerava um herói. Já Fix achava que tinha sido tolo em deixá-lo partir; acreditava que o inglês se internaria pelas terras americanas, escapando assim da prisão.
À tarde a locomotiva que tinha seguido à frente apareceu na estação de Kearney, trazida pelo maquinista e pelo foguista, já recuperados dos ferimentos. Com a máquina de volta, bastaria engatá-la nos vagões e a viagem prosseguiria.
 Mas não havia nem sinal de Fogg ou dos soldados. O trem ia partir, e Aouda recusou-se a embarcar. Ficaria na estação esperando por seu salvador e amigo. Fix, sem saber o que fazer, resolveu ficar com ela. O trem partiu, afinal... e a noite chegou.
Foi uma noite longa e fria. Pela manhã, o capitão do forte pensava em mandar alguns soldados à procura dos sumidos, quando ouviram tiros. Saíram todos, e viram o grupo que voltava, a certa distância, fazendo-lhes sinais. Eram o sargento, os soldados, Fogg e os três passageiros que os índios haviam aprisionado, inclusive Passepartout!
O grupo havia chegado bem a tempo de libertar os três, cercados por dezenas de índios. O capitão acolheu seus soldados com elogios, Aouda tomou, emocionada, a mão de Fogg, e Fix não sabia o que dizer. Passepartout estava furioso.
— Onde está nosso trem?!
Mais furioso ainda ficou ao saber que o trem partira, e que somente naquela tarde outro trem chegaria para levá-los a Omaha. Ao ouvir falar nisso, Fíleas Fogg, ainda de mãos dadas com Aouda, disse apenas:
— Ah.


Capítulo 9: E agora?

O atraso era de um dia. Se não tivesse perdido o trem, Fogg chegaria a Nova York dia 11 pela manhã, com tempo sobrando, pois o navio para a Inglaterra partiria às dez e meia da noite.
Passepartout estava desesperado, achando que o amo perderia a aposta por ter voltado para salvá-lo dos índios. E Fix, que andara conversando com as pessoas do local, começou a fazer contas.
— Senhor Fogg, faltam vinte horas para o navio partir. Se esperarmos o próximo trem chegar, não estaremos lá a tempo. Mas, se conseguirmos outra forma de chegar depressa em Omaha, ainda conseguiremos embarcar para Chicago e Nova York.
— Não podemos ir a pé — comentou Fíleas.
— Mas podemos ir de trenó! — sugeriu o detetive.
Um dos homens com quem ele havia conversado tinha um trenó a vela, que parecia um barquinho sobre esquis, próprio para andar na neve. O dono dizia que seria possível ir velejando pela neve sólida até Omaha.
Não havia outro jeito. Fogg contratou o homem e, às oito horas daquela manhã, os quatro viajantes embarcaram no pequeno veículo: Fíleas, Aouda, Passepartout... e Fix. O homem içou as velas, eles se encolheram uns junto dos outros, e o trenó começou a deslizar sobre a neve.
Com as velas captando o vento gelado que soprava, logo o trenó estava correndo vertiginosamente, a mais de sessenta quilômetros por hora! Foi a viagem mais incrível da vida de nossos amigos: deslizavam sobre a planície como se estivessem voando. Viam passar campinas geladas, árvores sem folhas, aves selvagens... e lobos. Várias vezes foram seguidos por alcateias de lobos famintos, que se aproximavam perigosamente. Passepartout estava sempre a postos para atirar neles, se fosse preciso, mas o trenó continuava em sua marcha veloz e os lobos nunca os alcançaram.
Passava de meio-dia quando viram um povoado ao longe. Haviam chegado a Omaha! Sem perder tempo, correram para a estação ferroviária. Um trem estava justamente partindo para Chicago.
Mal tiveram tempo para acomodar-se. O trem partiu e percorreu velozmente o território de dois estados, enquanto anoitecia. No dia seguinte, às quatro horas da tarde, chegavam a Chicago, grande cidade americana que fica às margens do lago Michigan.
Nem pararam para fazer turismo. Fogg os fez passarem de um trem a outro, pois uma composição partiria imediatamente para Nova York, que ficava a 1.700 quilômetros de Chicago. E lá se foi mais um trem, cortando quatro estados, em direção à estação junto ao rio Hudson, que deságua no oceano Atlântico, e onde ficava o embarcadouro.
Eram onze e quinze da noite quando pisaram no local. O navio "China", que seguia para Liverpool, havia partido havia 45 minutos...
 Parecia que a aposta de Fíleas Fogg estava perdida. Nenhum outro navio partiria para a Inglaterra nos próximos dias, e se fossem para a França não haveria tempo útil para chegarem a Londres antes do dia 21 de dezembro. O que fazer?

Manhattan é uma ilha, no estuário do rio Hudson, onde se localiza o centro da cidade de Nova York.

Passaram a noite num hotel da Broadway, em Manhattan. Passepartout não conseguia dormir, pensando que tudo aquilo era sua culpa... mas seu patrão dormiu tranquilamente, como se não estivesse quase perdendo 20.000 libras.
No dia seguinte, logo cedo, Fogg foi percorrer as margens do rio Hudson à procura de um navio que seguisse para a Inglaterra. Encontrou um barco de carga que parecia prestes a partir. Apresentou-se a seu dono, o capitão Speedy.
— Para onde o senhor vai? Leva alguma carga?
— Em uma hora sigo para Bordeaux, na França. Não levo carga, apenas lastro.

Os navios, em geral, só podem navegar com um certo peso a bordo. Por isso, quando urna embarcação não leva carga ou passageiros, carrega o que se chama lastro em seus porões: pedras, fardos ou quaisquer objetos pesados para que seja possível ao navio viajar em segurança.

— Não quer levar quatro passageiros para Londres? Pago bem pelas passagens.
— Nada disso. Resolvi ir para Bordeaux, e é para lá que eu vou.
Fíleas pensou um pouco. Aquele navio era sua última esperança...
— Então, tudo bem: aceitaria levar quatro passageiros a Bordeaux?
— Não gosto de transportar passageiros — negou-se o homem.
— Pago dois mil dólares por pessoa — acrescentou Fogg.
O homem abriu a boca. Receber oito mil dólares, sem ter de mudar seu itinerário, valia a pena. Concordou, e avisou que partiriam às nove horas.
O navio chamava-se "Henrietta", tinha o casco metálico e a armação de madeira, e era bem rápido. Se o vento ajudasse, chegariam à França no dia 21 de dezembro.


Capítulo 10: Um motim e um novo porto

Nem dois dias haviam se passado da partida dos Estados Unidos e Fíleas Fogg estava tomando providências para mudar o destino do "Henrietta". Como? Fez-se amigo dos marinheiros e convenceu-os do que não havia convencido o capitão: de que ganhariam muito dinheiro se, em vez de ir à França, dirigissem o barco para a Inglaterra!
O que Fogg causara se chamava, na verdade, um motim. Os marinheiros, descontentes com a antipatia do dono do barco, resolveram aceitar o dinheiro oferecido pelo inglês e rumar para o porto de Liverpool. Speedy brigou, esbravejou, berrou, mas não conseguiu fazê-los mudar de ideia. E foi trancado em seu camarote, enquanto o cavalheiro tomava o leme e pilotava em seu lugar...
Os primeiros dias de viagem transcorreram com tempo ameno e mar em boas condições, as velas recebendo um bom vento Nordeste. Passepartout estava radiante; apreciava cada vez mais aquele patrão capaz das mais ousadas aventuras. Já Fix estava em puro estado de desespero. Vira como Fogg manobrara para tomar o navio, e estava convencido de que, além de ladrão, o inglês era um pirata — pensava até que ele nunca voltaria à Inglaterra, mas ficaria navegando pelo mundo praticando a pirataria...
Após o dia 17 de dezembro, a temperatura caiu e o vento mudou para Sudeste, ameaçando transformar-se num furacão. Mesmo assim, valendo-se das caldeiras a carvão, o "Henrietta" se manteve no curso e dentro do prazo.
Porém mais problemas estavam para acontecer. No dia 18, um dos marinheiros procurou Fogg, a quem todos agora chamavam de capitão, para avisar que o carvão estava acabando.
— Tínhamos combustível para chegar a Bordeaux, mas ele não será suficiente para irmos à Inglaterra — explicou o homem.
Realmente, Liverpool ficava bem mais ao Norte, no mar da Irlanda. Fogg pensou um pouco no que poderia fazer, e mandou Passepartout trazer o capitão Speedy.
Solto do camarote, o homem subiu ao tombadilho xingando o inglês de pirata, bandido, e outros adjetivos simpáticos. Mas parou, boquiaberto, quando o outro propôs:
— Venda-me o seu navio. Pago por ele 60.000 dólares.
O homem sabia que o barco não valia tudo aquilo; era uma oferta que não podia recusar. Só não estava entendendo o porquê de tal proposta.
— É simples — explicou-lhe Fogg. — Preciso queimar o madeiramento do navio, pois o carvão se acabou e ainda estamos a uns 1.500 quilômetros de Liverpool. Se concordar, o navio é meu e posso queimar tudo que for feito de madeira. O casco de ferro e as máquinas ficam para o senhor.
O capitão Speedy parou de xingar Fogg na hora e tratou de elogiá-lo o mais que podia. O negócio estava feito. E Fogg mandou os marinheiros começarem a desmontar a armação do tombadilho, dos camarotes e dos beliches... para queimar.
Nos dois dias que se seguiram, tudo o que fosse feito de madeira foi sendo transformado em combustível, enquanto o navio avançava para o Norte. No dia 20 eles avistaram a costa da Irlanda. Faltavam 24 horas para o momento final da aposta, e não havia tempo útil para o navio chegar a Liverpool e eles partirem de lá para Londres. O capitão Speedy comentou:

Hoje, a cidade de Queenstown se chama Cobh. Mudou de nome em1922, quando a Irlanda se tornou livre do domínio da Inglaterra. Queenstown significa "cidade da rainha".

— Sinto muito que perca sua aposta. Ainda estamos à vista de Queenstown, falta muito para Liverpool.
Fogg olhou a cidade que se via ao lado do porto, na costa da Irlanda. Lembrou-se de que a correspondência que vem dos Estados Unidos para a Europa é deixada pelos navios em Queenstown, de onde vai, de trem, para Dublin, capital da Irlanda, e de lá segue para Liverpool em navios bem mais rápidos que os de passageiros. Se ele pudesse ir a Dublin, teria a possibilidade de chegar a Londres em 20 horas — quatro horas antes das oito e quarenta e cinco da noite!
— Vamos aportar em Queenstown — decidiu. E foi à uma hora da madrugada que o "Henrietta", que agora era um casco quase totalmente pelado, entrou no porto irlandês. Em meia hora estavam na estação ferroviária, tomando um trem para Dublin. Chegaram lá quando amanhecia, e Fogg lhes conseguiu passagem num dos barcos a vapor dos correios, que os levaria a Liverpool.
Chegaram quando era quase meio-dia de 21 de dezembro. Havia tempo de sobra para tomarem outro trem e irem para Londres, onde Fogg ganharia a aposta! Porém, no momento em que desembarcaram, Fix tirou do bolso a ordem de prisão que viajara o mundo todo com ele, pôs a mão no ombro do cavalheiro e declarou: — Fíleas Fogg, em nome da Rainha, considere-se preso!


Capítulo 11: Uma decepção e uma surpresa

Agora não havia escapatória. A ordem de prisão de Fix era legal, fosse Fogg culpado ou não — isso caberia a um juiz decidir.
O problema é que um julgamento demoraria dias, e só restavam pouco mais de oito horas para que ele comparecesse ao salão do Clube, provando que era possível dar-se a volta ao mundo em 80 dias.
Como havia gastado quase toda a quantia que levara para a viagem — 20.000 libras —, só lhe restavam, no banco, outras 20.000 libras, que constituíam o total de sua fortuna. E, se perdesse, bastaria aos seus amigos descontar o cheque que ele havia lhes deixado, em confiança. Resumindo: se não escapasse da sala gradeada na Alfândega, em que a polícia o tinha aprisionado, Fíleas Fogg estaria completamente arruinado.
O tempo passava. Do lado de fora da Alfândega, Aouda e Passepartout esperavam, condoídos. O que seria do cavalheiro, agora?!
Eram duas e meia da tarde quando Fix reapareceu, descabelado e aflito.
— Foi tudo um engano! O ladrão do banco foi preso há três dias! O sr. Fogg é inocente... Está livre para ir.
Pela primeira vez na vida, Fíleas não ficou impassível. Erguendo o braço, deu tamanho murro na cara do detetive que o derrubou no chão. Depois, tratou de reunir-se ao criado e à dama, tomar uma carruagem e correr para a ferrovia.
Não havia nenhum trem partindo de Liverpool para Londres naquele momento. Ele foi falar com os encarregados e fretou um trem especial. Tinha apenas cinco horas e meia para chegar à capital da Inglaterra!
Afinal o trem fretado parou na estação, e eles desceram. Segundo o relógio de Fogg, eram oito horas e 50 minutos do sábado...
Por cinco minutos, ele havia perdido a aposta!
O inglês não comentou nada, nem demonstrou a menor emoção. Mandou que Passepartout fosse comprar alguns mantimentos e seguiu para sua casa na Rua Saville, com Aouda. Instalou a dama num quarto de hóspedes e trancou-se no seu, de onde não saiu até a manhã seguinte.
A moça e o criado estavam muito preocupados. Será que Fíleas, sabendo que estava reduzido à pobreza, não tentaria alguma loucura, como o suicídio? Mas nada puderam falar com ele, que continuava encerrado no quarto, até que na noite de domingo pediu para conversar com Aouda.
— Sinto muito tê-la trazido à Inglaterra nessas condições — disse a ela —, mas cuidarei para que não lhe falte nada.
— O que vai ser do senhor?! — ela indagou, aflita. — Não tem parentes e amigos que possam ajudá-lo?
— Não tenho ninguém, minha senhora.
— Pois agora tem — resolveu Aouda, tomando a mão dele. — Serei sua família e sua amiga. Case-se comigo.
Ele não soube o que dizer. Olhou-a, demonstrando naquele olhar que estava apaixonado. Finalmente conseguiu dizer:
— Eu a amo!
Não perderam tempo em chamar Passepartout e dizer-lhe que precisavam de um ministro, para uma cerimônia de casamento. Feliz da vida ao ver como tudo se resolvia, o francês se propôs a sair naquela noite mesmo para falar com um certo reverendo Wilson, da paróquia mais próxima.
— São oito horas e cinco minutos — ele conferiu. — O reverendo deve ainda estar na paróquia. Marcaremos o casamento para amanhã, segunda-feira.
E os dois, olhando-se apaixonadamente, concordaram em casar-se no dia seguinte, segunda-feira.
Passepartout saiu correndo para encontrar o ministro.
O que eles não sabiam era que, após os jornais noticiarem a prisão do verdadeiro ladrão do Banco da Inglaterra, no dia 17 de dezembro, o país inteiro se lembrara de que a aposta feita entre Fogg e os sócios do Clube Reformador estava prestes a encerrar-se.
Caso o cavalheiro não aparecesse no Clube até as oito horas e 45 minutos da noite de sábado, dia 21 de dezembro, teria perdido 20.000 libras. Como os ingleses adoram apostar, centenas de pessoas estavam apostando no resultado — algumas contra, outras a favor de Fogg. E, quando chegou a noite em questão, lá estavam os amigos no salão.
O tempo passava. O relógio bateu oito horas. Oito e meia. Oito e quarenta. E nada...
— Ele não vem — disse um dos homens. — O último  trem de Liverpool chegou há mais de uma hora. Se Fogg tivesse vindo nele, já estaria aqui.
— Vamos esperar — retrucou outro membro do Clube. — Fogg é pontual. Pode ser que chegue no último minuto.
A emoção era enorme. Ninguém conseguia tirar os olhos do relógio... E foi assim que, quando eram exatamente oito horas e 44 minutos, a porta do salão se abriu, e Fíleas Fogg entrou no recinto!
— Aqui estou — disse ele, com a calma de sempre.
Por um minuto, a aposta foi vencida!


Capítulo 12: A volta ao mundo... em 79 dias?   

Mas como isso teria sido possível, se ele havia chegado em Londres às oito e cinquenta?!
Ao sair de casa para ir falar com o reverendo Wilson, Passepartout estava apressado. Mais apressado ainda ficou ao deixar a paróquia, às oito horas e 35 minutos. Corria feito louco e, em poucos instantes, entrava na casa da Rua Saville, berrando:
— Senhor! ... O casamento... Não pode ser amanhã...
— Por quê? — indagou Fogg, estranhando tanta agitação.
— Porque amanhã não é segunda-feira... é domingo, dia 22 de dezembro! O senhor se enganou por um dia: hoje é dia 21, e faltam só dez minutos para as oito e 45!
E arrastou o patrão para fora de casa. Sem ter tempo de pensar, Fogg tomou uma carruagem e prometeu uma bela gorjeta ao condutor se o levasse para o Clube o mais rapidamente possível. A carruagem disparou pelas ruas de Londres...
E, quando o relógio do Clube Reformador bateu oito horas e 45 minutos, Fíleas Fogg estava no salão, com os amigos. Havia ganhado a aposta, afinal!
Como poderia, porém, um homem tão metódico e pontual ter-se enganado em 24 horas nos seus cálculos?! A explicação estava na direção que tomara, ao viajar.

Se Fogg tivesse viajado no sentido Oeste, teria perdido uma hora a cada meridiano que atravessasse, já que para Oeste o fuso horário faz com que seja sempre mais cedo do que a Leste.

O cavalheiro tinha dado a volta ao mundo viajando para o Leste e, por isso, a cada meridiano que atravessava, ganhava uma hora. Ele acertava seu relógio segundo a hora local, enquanto o de Passepartout ficara o tempo todo marcando a hora de Londres. Quando eles finalmente chegaram à sua cidade, haviam dado a volta ao mundo e passado por 24 meridianos, o que quer dizer que haviam ganhado 24 horas — e, achando que estavam no dia 21, na verdade tinham chegado na noite do dia 20!
Fogg recebeu, portanto, as 20.000 libras da aposta, que meramente cobriram as despesas que tivera na viagem, pois havia gastado mais do que 19.000 libras. Contudo, ele não se importava com isso: não fizera a viagem para ganhar dinheiro, mas para provar seu ponto de vista.
Dois dias depois, Fíleas e Aouda casaram-se, com Passepartout servindo como padrinho da moça. No dia seguinte ao casamento, o francês acordou com uma ideia na cabeça.
— Patrão — disse ele a Fogg —, já pensou que poderíamos ter dado a volta ao mundo em 78 dias?
— Sim — respondeu-lhe o amo —, se não cruzássemos a Índia. Mas se fizéssemos isso, eu não teria conhecido Aouda, não é mesmo?
Fogg tinha razão. Não ganhara nem perdera dinheiro naquela viagem, mas havia encontrado o amor. 
Quem não daria a volta ao mundo por muito menos?

                                                        FIM




Sobre o autor:

Júlio Verne nasceu na cidade de Nantes, na França, em 1828. Seu pai era advogado e esperava que o filho seguisse sua profissão. Júlio, porém, desde criança amava os livros, especialmente as narrações de viagens e aventuras. E acabou abandonando os estudos de Direito para trabalhar em Paris escrevendo musicais para o teatro e artigos sobre ciência em uma revista
Seu primeiro livro foi Cinco semanas em um balão. Custou a encontrar um editor que o publicasse, mas o livro fez um enorme sucesso, tornando-o famoso. Seguiram-se Viagem ao centro da Terra, Da Terra à Lua, Vinte mil léguas submarinas, Volta ao mundo em oitenta dias e muitos outros. Verne morreu na cidade de Amiens, em 1905, e é considerado o pai da ficção científica.
Em Volta ao mundo em oitenta dias, Júlio Verne nos leva junto com os protagonistas numa viagem ao redor do mundo. É um livro emocionante - com uma aventura atrás da outra e muitas surpresas –, no qual o autor demonstra a paixão que teve por conhecer lugares diferentes e exóticos e também pelos avanços da tecnologia.

Volta ao mundo em oitenta dias fala sobre o quê?


Sobre diferença entre culturas:

Os protagonistas deste livro são um cavalheiro inglês, Fíleas Fogg, e seu criado francês, Jean Passepartout. Quando eles saem em uma corrida pelo mundo, encontram modos de vida muito diferentes dos que eles conheciam na Europa.
Volta ao mundo em oitenta dias não retrata apenas lugares distantes no globo terrestre, mas mostra como nesses locais as pessoas vivem de forma diferente e suas culturas podem parecer, para alguns, muito estranhas.
Fogg e Passepartout vivem aventuras no Egito, na Índia, na China e no Japão, além de atravessar os Estados Unidos, da costa oeste à costa leste. E descobrem fatos surpreendentes sobre cada local e cada povo.


Sobre ciência e tecnologia:

Júlio Verne viveu no século XIX, num tempo em que a ciência avançava muito rapidamente e as invenções estavam mudando a forma de ver o mundo. Um século antes, uma volta ao mundo demoraria anos e teria de ser feita em navios a vela e sobre animais de montaria. Na época de Fogg, já poderia ser feita em oitenta dias, pois existiam navios e trens a vapor. Hoje, uma viagem dessas pode ser feita em oitenta horas, num avião a jato!
Verne era um homem curioso e interessado no desenvolvimento da ciência. Nas histórias que escrevia, as invenções e descobertas sempre são importantes e ajudam os personagens a se locomover, a agir. Em algumas obras, ele chegou a "inventar" coisas que só seriam criadas ou realizadas décadas (até mesmo um século) depois, como submarino nuclear e a viagem do homem à Lua. Por essa razão ele é considerado uma espécie de profeta ou visionário.


Sobre honra, lealdade e amor:

O personagem Fíleas Fogg é um típico nobre inglês: honrado, sua palavra vale mais que qualquer coisa; corajoso, não hesita em arriscar vida para salvar seus companheiros de viagem. É um autêntico cavalheiro britânico, calmo, fleumático — não demonstra seus sentimentos — e contrasta com seu criado Passepartout, que é um francês entusiasmado e apaixonado.
Por isso mesmo o relacionamento entre Fogg e Passepartout é como o de Dom Quixote e Sancho Pança: ambos formam o par ideal de aventureiros, com o tranquilo amo idealizando a viagem e o criado leal apaixonadamente tomando conta dos detalhes práticos. Acabam virando grandes amigos, mais do que patrão e empregado, por força das aventuras arriscadas de sua viagem. E quando Fogg salva da morte a bela Aouda, Passepartout torce para que ela e o cavalheiro fiquem juntos — justamente o que acontece.
O livro traz uma bela pitada de romance, pois Aouda também é capaz de sacrificar-se pelo amor de seu corajoso salvador. Volta ao mundo em oitenta dias é uma história emocionante, que nos faz conhecer melhor nosso mundo e ver que, apesar das distâncias e das diferenças culturais, qualidades como honra e lealdade são válidas em qualquer lugar do planeta.

Alguns endereços úteis para enriquecer o estudo da obra:

DRAW MY BOOK - A volta ao mundo em 80 dias
Trabalho escolar feito por Giovana Somera.
Trailer - A Volta ao Mundo em 80 dias -- Júlio Verne

Leitura com música: A volta ao mundo em oitenta dias