Dom Ramiro vai à Europa
Ninguém, das
centenas de pessoas que estavam àquela tarde no Aeroporto de Ezeiza, poderia
imaginar quanto custara ao dr. Ramiro González chegar até ali: maletas fechadas
a chave, passaporte e passagem na mão, esperando o momento de embarcar para a
distante e mitológica Europa. Mas o fundamental é que estava tudo em ordem. E
previsto.
A coisa
começou vários meses atrás, quando Ramiro cedeu à pressão da filha e da mulher.
"Precisas conhecer a Europa, papai. Chega de trabalhar, trabalhar.
Chegaste já aos cinquenta e a vida se vai." Essas últimas palavras fizeram
estremecer o acomodado coração de Ramiro: a vida se vai. No dia seguinte, no
consultório, entre um cliente e outro, as palavras voltavam-lhe à memória: se
vai, se vai... De volta à casa, abriu o jornal e não conseguiu ler as notícias
com atenção: Paris, UP; Londres, UP; Roma, Berlim, Milão... Esses nomes de
cidades famosas provocavam um redemoinho de sonhos e desejos em sua alma. E
medo também. Comparava sua rua tranquila, a sala de sua casa, tudo conhecido e
seguro. Por quais ruas e avenidas, por quais quartos de hotéis e restaurantes
iria pervagar? Que poderia acontecer com ele e sua pobre mulher soltos num
mundo desconhecido? Mas, ao mesmo tempo, lembrava-se de que a vida se ia.
Um belo dia
entrou em casa decidido. Chamou a mulher e comunicou-lhe a decisão de ir com
ela à Europa.
— Mas aonde?
Paris? Londres?
— Ainda não
sei. Vamos estudar a coisa pacientemente.
Mas, tomada a
decisão, tudo se precipitou. No dia seguinte, entrava em casa carregado de
folhetos turísticos, guias de viagem, mapas de cidades. Depois do jantar, ele,
a mulher e a filha começaram a examinar os possíveis roteiros. Perderam nisso
toda a noite e foram dormir aflitos. No dia seguinte, antes do café da manhã,
já estava ele a examinar mapas e rotas aéreas. Saiu, comprou um mapa grande da
Europa. Ao fim de alguns dias, estava
traçado o roteiro, e iniciou-se uma nova etapa da "viagem".
Agora,
tratava-se de escolher os hotéis em cada cidade.
— Isso se
escolhe lá — sugeriu a mulher impaciente.
— Lá?! Só saio
daqui com tudo acertado, ou não vou.
Visitou
agências de turismo, embaixadas, anotou preços, calculou a conversão das moedas,
e numa semana definira os hotéis onde ficariam hospedados. Perfeito, mas que
faremos nessas cidades? Que lugares visitaremos? A mulher fez cara de aborrecimento.
Ele seguiu em frente, pesquisando os pontos turísticos mais interessantes de
cada cidade: museus, igrejas...
— Não gosto de
museu — declarou a mulher. — Não vou fazer uma viagem tão longa pra me meter numa
casa cheia de quadros velhos!
— Quadros
velhos, sua ignorante! Obras célebres!
— Quero é
passear, conhecer as lojas, as ruas, os lugares bonitos.
— Isso também
— admitiu ele.
E com uma
caneta ia assinalando, no mapa de Paris, a rua do hotel onde se hospedariam e
os diferentes pontos que visitariam.
— Na primeira
manhã — dizia ele — sairemos do hotel e caminharemos por esta rua, está vendo
aqui?
— Que rua?
Isso é um labirinto infernal.
— Esta. Bem,
seguiremos até esta esquina, dobraremos à direita, o Louvre está a umas poucas quadras...
— Desse jeito,
não vai ser preciso viajar. Já estás em
Paris, caminhando pelas ruas... Que graça tem isso?
— E que graça
tem se perder numa cidade como essa, se mal sabemos algumas palavras em
francês?
— Tu, porque
eu falo francês correntemente!
— Eu sei!...
Houve atritos,
discussões, amuos. Quase cancelam a viagem. Mas para ele isso já era
impossível: se metera naquilo até o pescoço. E assim, o coração pulsando forte,
Ramiro e a mulher estavam agora ali, em frente ao balcão da Aerolíneas
Argentinas, prestes a voar.
E voaram.
Despediram-se da filha e dos sogros, e entre vaidosos e assustados entraram no
avião que os levaria até Madri, onde fariam uma conexão para Atenas.
Era uma tarde
límpida e eles cruzaram o Atlântico sorrindo. Quando chegaram a Madri, muitas
horas depois, o avião da conexão havia sido sequestrado. Reinava uma grande
confusão no tráfego aéreo. Na confusão, as maletas desapareceram. Foram levados
para um hotel que não escolheram, numa cidade que não fazia parte do roteiro
que traçaram e passaram a noite lavando camisa, cueca e calcinhas para poder
vestir no dia seguinte.
A mulher
cantarolava e o olhava de soslaio.
— Os teus planos,
hein, Ramiro?
Ele fazia que
não ouvia.
(GULLAR, Ferreira. O menino e o arco-íris. São Paulo:
Ática, 2001. pp. 54-57)