O condutor ia no pescoço do
elefante, Fogg e Cromarty iam enfiados um em cada cesto, dos dois lados, e
Passepartout ia montado no lombo, equilibrando-se como podia para não cair,
sempre usando suas engraçadas chinelas bordadas.
Pensando em ganhar tempo, o guia
não seguiu a estrada em que estavam sendo colocados os trilhos do trem. Tocou o
elefante pelo meio da mata. Os passageiros não estavam lá muito confortáveis:
Fogg e Cromarty iam balançando nos cestos, e Passepartout sacolejava sem parar
no lombo do animal. Mesmo assim, ficou amigo do elefante, e de tempos em tempos
oferecia-lhe torrões de açúcar.
Iam contornando aldeias e povoados,
evitando encontrar o povo da região. Quando eram quatro horas da tarde, o
elefante parou de andar, inquieto.
— O que aconteceu? — quis saber
o general.
Enquanto Fogg e seu criado
esperavam, o guia entrou na floresta para investigar. Voltou logo mais,
explicando que havia uma procissão de sacerdotes brâmanes à frente. Todos se
esconderam, curiosos, de maneira a ver o grupo passar.
Mas não podiam imaginar o que
estava acontecendo. Além de sacerdotes, músicos e moradores daquela região, o
cortejo levava uma estátua da assustadora deusa Kali, um palanquim carregando o corpo de um homem ricamente vestido, e
guardas arrastando uma jovem mulher, adornada com ricas joias.
— O que é isso? — indagou Fogg,
vendo que o general e o guia se assustavam.
— Eles estão indo para o templo
de Pillaji, aqui perto. É uma cerimônia fúnebre: o homem no palanquim é um
rajá, que morreu; amanhã cedo seu corpo será cremado, e a moça que é levada
pelos guardas é sua viúva. Será queimada junto com ele.
— Queimada viva? — exclamou Passepartout. —
Isso é assassinato!
Os viajantes estavam indignados.
Não conseguiam seguir viagem sabendo que logo a pobre moça seria morta daquela
maneira horrível.
— E se a salvássemos? —
perguntou Fogg, sem demonstrar nenhuma emoção. — Temos tempo sobrando, só
precisamos estar em Calcutá no dia 25.
Combinaram um plano para
resgatar a jovem. Segundo o guia, ela deveria passar a noite presa no pagode de
Pillaji; os acompanhantes da procissão costumavam festejar e beber muito. Se
ficassem embriagados, seria possível entrarem escondidos no templo durante a
madrugada, para libertar a prisioneira.
Deixando o elefante oculto, eles
esperaram anoitecer e foram-se chegando junto ao pagode. Logo viram muitas
pessoas dormindo, parecendo desmaiadas de tanto beber. Infelizmente, havia
guardas bem acordados vigiando os portões dianteiros do templo.
Tentaram então dar a volta para
abrir um buraco nos fundos. Estavam conseguindo tirar os velhos tijolos do muro
quando um ruído avisou que havia gente chegando.
Voltaram para a mata e viram
vários guardas cercarem o pagode também na parte traseira. Seria impossível
forçar a entrada sem serem notados!
— Não podemos salvá-la, temos de
partir — disse o general.
— Não há outro jeito — concordou
o guia —, eles são muitos: se os guardas nos apanharem, nós é que seremos
mortos. Vamos embora.
— Ainda não — decidiu Fíleas
Fogg. — Vamos esperar até amanhã.
Passaram a noite escondidos,
porém desanimados. Passepartout, que não se conformava em ver a pobre moça
morrer queimada, subira em uma árvore. Dali podia ver o templo e a pira de
madeira — sobre a qual haviam colocado o corpo do falecido rajá — prontinha
para ser queimada pela manhã. E começou a ter uma ideia fantástica...
Quando amanheceu, os músicos
começaram a bater nos seus tambores, o povo foi acordando e cercando a pira funerária, as portas do templo se abriram e os sacerdotes saíram.
Dois deles trouxeram a vítima, que parecia dopada, pois mal podia andar.
O general e o aventureiro inglês, escondidos na mata,
viram tudo e sentiram-se furiosos. O que poderiam fazer diante de todo aquele
povo e de guardas armados?
A viúva foi deitada sobre a pira, junto ao corpo do rajá.
Um homem trouxe uma tocha acesa e ateou fogo à madeira... O guia e o general
tiveram de segurar Fogg, que queria avançar para a multidão e tentar salvar a
moça assim mesmo.
Porém, naquele momento, algo inacreditável aconteceu: o
falecido rajá levantou-se no alto da pira, tomou a esposa nos braços e desceu
de lá de cima, entre os gritos de espanto de todos. Estava vivo?! Mas como?!
Enquanto o povo o olhava, o rajá correu para o meio da
floresta e se aproximou dos aventureiros, carregando a jovem desmaiada. E
falou, com uma voz muito familiar:
Somente então eles perceberam que era Passepartout! Durante a madrugada, enquanto todos olhavam o
pagode, ele fora até a pira e vestira as roupas do príncipe morto, esperando o
momento certo para tirar a moça de lá...
Mais que depressa, eles colocaram Aouda em um dos cestos,
subiram no elefante e o guia tratou de embrenhar-se na floresta, a grande
velocidade.
Não demorou muito para perceberem que eram seguidos:
homens gritando se aproximavam, flechas começaram a ser disparadas sobre eles,
e logo ouviram o disparo de balas de revólver. Os perseguidores estavam, porém,
a pé, e o elefante desandou num trote que logo os afastou dali. Estavam salvos!
Quando o dia clareou de vez, já se encontravam longe. A
moça ainda dormia, mostrando que realmente fora drogada. Por volta de dez horas
da manhã chegaram enfim a Alahabad, cidade que ficava na confluência do rio
Ganges com o rio Jumna.
Fogg levou-a para a estação de trens e mandou
Passepartout ir à cidade comprar algumas roupas para ela. Era ainda a manhã do
dia 24. Havia tempo de sobra para chegarem a Calcutá e tomar o navio, ao
meio-dia do dia seguinte!
— Paguei pelo seu trabalho, mas não paguei pela sua
lealdade. Aceita o elefante como um presente?
O homem não sabia o que dizer. Um elefante, na Índia,
valia uma fortuna!
Passepartout,
contente com a generosidade do patrão, que estava cada vez mais subindo no seu
conceito, insistiu para que o rapaz aceitasse. Deu ao animal mais um torrão de
açúcar e o elefante, feliz, agarrou-o com a tromba e levantou-o até o alto!
O trem ia partir. Fogg, Passepartout e Cromarty
despediram-se do guia e embarcaram, instalando a jovem viúva num dos
compartimentos.
Quando acordou, ela não podia acreditar que fora salva.
Agradeceu várias vezes a Fogg e a Passepartout, que a tratavam com toda a
gentileza. Segundo o general, ela precisava sair da índia o mais depressa
possível, pois enquanto estivesse em território indiano poderia ser recapturada
pela poderosa família do rajá. Fogg propôs-se a levá-la com eles para Hong
Kong, e Aouda aceitou, pois tinha um parente naquela cidade.
Após deixar Alahabad, o trem fez uma parada em Benares,
onde o general Cromarty iria encontrar seu regimento de soldados. Ele se
despediu afavelmente de todos, tendo-se tornado grande amigo deles. E o trem
seguiu viagem.
No dia seguinte, às sete horas da manhã, o trem parou na
estação de Calcutá. Haviam chegado no dia 25, o dia previsto para embarcarem no
navio "Rangoon", que partiria ao meio-dia para a China. A próxima
parada seria Hong Kong!
Contudo, uma surpresa desagradável os esperava na Cidade
Negra, como Calcutá era chamada. Assim que desembarcaram, um policial os
intimou a acompanhá-lo. Sem saber o que estava acontecendo, Fogg concordou e lá
se foram os três — ele, Passepartout e a jovem Aouda — em uma carruagem, que os
levou a uma casa com janelas gradeadas. Ali, foram informados de que, às oito e
meia da manhã, deveriam comparecer diante de um juiz.
— Estamos presos! — exclamou Passepartout.
— É minha culpa — disse Aouda, achando que os amigos
seriam acusados de impedir os sacerdotes de Pillaji de queimá-la com o rajá.
— Deve ser algum engano — respondeu Fíleas, impassível.
Quando finalmente foram levados à sala do juiz, um escrivão chamou os nomes de
Fíleas Fogg e de seu criado. Entraram três sacerdotes no recinto e o juiz
disse:
— Essas testemunhas acusam o criado do senhor Fogg de
profanar um lugar sagrado na índia.
— Pois então sou culpado — disse o francês, achando que
os sacerdotes eram os mesmos que levavam Aouda à força para a pira funerária —,
mas não podia deixar esses três queimarem aquela senhora em frente ao pagode!
O juiz fez cara de quem não estava entendendo nada.
— esclareceu Passepartout.
— Mas estamos falando do templo de Malebar, em Bombaim! E
eis aqui a prova do crime — explicou o magistrado, colocando sobre a mesa um
par de botas.
— Meus sapatos! — disse ele, finalmente entendendo do que
se tratava.
A verdade é que o detetive Fix desejara aproveitar a
encrenca em que o criado de Fogg se metera em Bombaim e embarcara os três
sacerdotes de Malebar no trem seguinte para Calcutá conseguindo uma ordem para
prender Passepartout por ter entrado calçado no pagode. Não havia ainda
recebido o mandado de prisão para Fogg, mas bastava-lhe reter os viajantes por
um tempo em Calcutá e esperar que chegasse.
Como nossos aventureiros tinham parado no meio da
floresta para o salvamento de Aouda, o detetive e os sacerdotes haviam chegado
antes deles à cidade, e Fix estivera alarmado com a demora, achando que haviam
fugido.
Mas, assim que viu Fogg e os companheiros chegarem, pôs
seu plano em ação.
Já que Passepartout havia-se declarado
"culpado", o juiz o condenou a uma multa e a quinze dias de prisão.
E, por ser Fogg responsável por ele, condenou o inglês a uma semana de prisão.
O criado e Aouda ficaram desesperados; seu navio partiria
para Hong Kong ao meio-dia, e eles não poderiam partir após a condenação à
prisão! A não ser que...
— Pago a nossa fiança.
Fix, que estava num canto da sala assistindo a tudo,
ficou gelado. Era direito de qualquer prisioneiro pagar uma fiança em dinheiro
para ficar em liberdade... O juiz, de acordo com a lei, disse que aquilo podia
ser feito, mas a quantia seria muito, muito alta.
— São 1.000 libras de fiança para cada um — decidiu o
magistrado.
Sem discutir, Fogg pegou o saco de viagem que
Passepartout levava e pegou lá dentro um maço de dinheiro, que entregou ao
escrivão: 2.000 libras!
As autoridades não tiveram outro jeito senão aceitar a
fiança e libertar os condenados. Fogg, Aouda e Passepartout que pelo menos
recuperou os seus sapatos — saíram de lá e foram depressa tomar uma carruagem
para o porto, de onde o "Rangoon" ia partir, em uma hora. Eram onze
da manhã... O detetive Fix, furioso, viu os três embarcarem.
— Bandido! — resmungou. — Vai gastar tudo o que roubou do
banco antes que eu o prenda. Mas não faz mal: vou segui-lo, nem que tenha de ir
até o fim do mundo!
E tratou de comprar passagem no navio também, depois de
deixar uma mensagem para que a ordem de prisão contra Fogg fosse enviada para
Hong Kong.
O "Rangoon" levantou âncora e partiu, começando
a percorrer o golfo de Bengala e a contornar as ilhas da Indonésia, passando
pelo estreito de Málaca para chegar ao Mar da China. Fix permaneceu em seu
camarote, evitando encontrar com os viajantes. Tinha esperança de prender Fogg
em Hong Kong, cidade que pertencia ao Império Britânico: se eles enveredassem
pelo Japão ou pela América, ele não teria autoridade para prendê-los, pois
estaria fora da jurisdição inglesa. Rezava para que o mandado estivesse
esperando por eles em Hong Kong; caso contrário, ele teria de fazer alguma
coisa, qualquer coisa, para atrasar novamente a viagem de Fogg.
Aouda se mostrava cada vez mais agradecida a Fíleas e a
Passepartout, por terem-na salvado e estarem cuidando dela até chegar em Hong
Kong, onde contava encontrar seu parente e ser acolhida por ele — já que não
podia voltar à Índia. Fix não entendia quem era aquela mulher e por que o
inglês a incluíra em sua viagem. Imaginava até que ela tivesse sido raptada, o
que talvez lhe possibilitasse prendê-los assim que chegassem.
Precisava de informações. E o jeito de obtê-las seria,
mais uma vez, interrogar Passepartout... Decidido a fazer isso, deixou seu
camarote e foi ao convés.
Logo encontrou o francês, que ficou muito intrigado por
encontrar Fix ali também. O detetive logo puxou conversa, fingindo estar
surpreso com o encontro, e ficou sabendo de toda a aventura na Índia. Logo
percebeu que, se Aouda não fora raptada, não serviria como desculpa para que
Fogg fosse detido em Hong Kong.
Após a conversa com Fix, Passepartout ficou desconfiado.
Por que aquele homem não lhe dissera antes que ia à China? Devia haver algum
motivo para que ele fizesse a mesma viagem que eles... e, como o pobre criado
não soubesse dos detalhes do roubo do banco em Londres, logo achou que o
detetive era um espião, enviado pelos parceiros de seu patrão para vigiar a
viagem deles em torno do mundo. Ficou zangado, pensando que os apostadores não
confiavam na palavra de seu amo. Resolveu não dizer nada a este, para não
preocupá-lo; mas pôs-se a vigiar Fix, assim como ele os vigiava.
No dia 30 de outubro, quarta-feira, o "Rangoon"
passou o estreito de Málaca, próximo à ilha de Sumatra, na Indonésia. E na
madrugada do dia seguinte aportou em Cingapura
para abastecer-se de carvão. O navio estava adiantado, o que ajudava os planos
de Fogg.
Durante essa viagem, além das desconfianças sobre o
detetive, Passepartout começava a desconfiar também de que a bela Aouda olhava
para seu salvador com algo mais do que apenas gratidão. O inglês, porém,
continuava tão impassível como sempre: ninguém seria capaz de adivinhar o que
ele sentia, se é que sentia alguma coisa.
Infelizmente, a continuação da viagem foi ameaçada por
uma terrível tempestade, que agitou o mar e fez o navio recolher as velas e
diminuir muito sua velocidade. Todos calculavam que a chegada à China iria
atrasar quase um dia, ou mais.
Fix estava achando ótimo o atraso. Passepartout se
descabelava de preocupação; Aouda tentava consolar Fogg, mas ele nem se
abalava; era como se a tremenda borrasca não passasse de uma chuvinha sem
importância.
Afinal a tempestade passou; o "Rangoon" atracou
à uma hora da tarde no porto de Hong Kong. Era o dia 6 de novembro, e o navio
em que eles embarcariam — o "Carnatic" — tinha sua partida marcada
para o dia 5. Estavam atrasados em um dia...
Porém, quando Fogg foi informar-se, descobriu que o
Carnatic tivera de consertar uma caldeira e retardara sua partida para o dia 7
pela manhã!
O criado ficou feliz da vida, e Fogg foi tratar de levar
Aouda para um hotel. Depois saiu para tentar encontrar o parente dela, que era
um rico negociante muito conhecido por ali. Para sua surpresa, porém, descobriu
que o homem havia-se mudado fazia alguns anos, e devia agora viver na Holanda.
Aouda não sabia o que fazer. O cavalheiro inglês, então,
ofereceu-lhe continuar acompanhando-os em sua volta ao mundo até chegar à
Europa, onde encontrariam seu parente com mais facilidade. Com relutância, ela
aceitou; e Fogg mandou Passepartout ao porto, para comprar três passagens no
"Carnatic" com destino a Yokohama, no Japão.
O jovem francês lá se foi, satisfeito ao saber que a bela
senhorita continuaria fazendo-lhes companhia. Comprou as passagens e soube que
os reparos do navio haviam terminado; o "Carnatic" zarparia de Hong
Kong naquele mesmo dia, às 8 da noite.
Ele ia voltando para o hotel, a fim de dar a boa notícia
ao patrão, quando encontrou Fix mais uma vez. Desesperado ao ver que o suposto
ladrão ia escapar-lhe novamente, o detetive tinha resolvido contar tudo ao
criado, esperando que ele o ajudasse a reter o patrão em Hong Kong até que
chegasse a ordem de prisão.
Os dois se dirigiram a uma espécie de bar, um local usado
por pessoas acostumadas a fumar ópio,
onde o detetive ofereceu vinho ao rapaz. E logo depois contou-lhe a verdade:
que ele era um agente da polícia em perseguição a Fíleas Fogg como suspeito do
roubo no Banco da Inglaterra.
Passepartout não podia acreditar. E ficou indignado com a
proposta de Fix.
— Se não quiser ser preso como cúmplice do ladrão, deve
ajudar-me a reter o homem aqui em Hong Kong até que chegue o mandado de prisão.
— Jamais! — respondeu o rapaz, furioso. — Meu patrão é um
homem honesto, e eu não vou traí-lo!
Fix fingiu aceitar a palavra do outro e lhe ofereceu mais
uma bebida, além de um cachimbo dos que havia no bar. Infelizmente para
Passepartout, era um cachimbo de ópio; e, assim que experimentou fumar aquilo,
o pobre rapaz caiu no sono. O detetive pagou toda a despesa e o deixou ali,
adormecido.
Capítulo 6:
Fogg enfrenta um tufão e Passepartout
vira palhaço
Enquanto Passepartout era
atraiçoado por Fix, sem desconfiar de nada, Fíleas Fogg e Aouda passeavam por
Hong Kong e faziam compras. Depois foram jantar no hotel e recolheram-se aos
seus quartos, sem que o criado do cavalheiro aparecesse.
Na manhã seguinte, os dois se
dirigiram ao porto e... infeliz descoberta! Não encontraram nem Passepartout
nem o navio. Somente então Fogg soube que o "Carnatic" partira na
noite anterior, e ainda encontrou-se com Fix, que se fez de amigo, explicando
que o navio largara para Yokohama doze horas antes. O detetive estava
satisfeito, achando que o cavalheiro inglês teria de esperar uma semana até que
outro navio partisse para o Japão, e haveria tempo para a ordem de prisão
chegar.
Fogg, porém, tinha outras ideias. Foi para as
docas, perguntar se algum barco o transportaria ao Japão. Encontrou o dono de
um iate que parecia pronto para partir. — Preciso estar em Yokohama no dia 14,
para pegar o vapor que vai para São Francisco, o "General Grant".
Pode levar-nos?
— Meu iate não aguenta uma
travessia tão longa; mas, se o senhor quiser que eu o leve a Xangai, poderá
tomar lá mesmo navio que segue para a América: o "General Grant" sai
de Xangai no dia 11, e somente então segue para Yokohama.
Prometendo ao dono do iate
pagar-lhe muito bem pela viagem, Fogg combinou a partida de Hong Kong para dali
a uma hora. E ainda ofereceu carona a Fix, que estava quase sapateando de
raiva... mas aceitou!
O único problema era o sumiço de
Passepartout. Aouda estava inconsolável com o desaparecimento do rapaz, e Fogg
deixou avisos na polícia e no Consulado francês, pedindo, se o criado fosse
encontrado, que o mandassem para a Europa.
Às três da tarde do dia 7, o
iate "Tancadera" enfunou as velas e partiu, com Fogg e Aouda ainda
olhando o cais para ver se o francês Aparecia. Fix, que embarcara também, dava
graças a Deus por ele não aparecer, ou todos saberiam que o detetive o havia
dopado no bar...
Deixando Hong Kong, o iate se
aventurava pelo mar da China, enfrentando ondas revoltas e ventos furiosos.
Tinham quatro dias para chegar a tempo de embarcar.
Durante a tempestuosa viagem,
Aouda e Fogg imaginavam o que teria acontecido a Passepartout. Achavam que ele
poderia ter descoberto, na última hora, que o "Carnatic" iria partir
doze horas antes, e esperavam que tivesse embarcado; assim, poderiam
encontrá-lo em Yokohama. Já Fix se preocupava com outra coisa: era Fogg quem
estava pagando sua passagem e sua estadia naquele barco, e ele se sentia
humilhado por estar devendo favores a quem considerava um ladrão...
O Trópico
de Câncer é uma das duas linhas imaginárias paralelas ao Equador,
que circundam o globo terrestre. O Trópico de Capricórnio fica no hemisfério
sul e o de Câncer, no norte.
|
No dia 9, o
"Tancadera" já havia passado pela linha do Trópico de Câncer quando o patrão do iate avisou
que se aproximava um tufão. Os marinheiros arriaram as velas e se prepararam
para o vendaval, que veio com toda a força.
O pequeno navio navegou para o
norte, arrastado por ondas enormes, que molhavam a todos e faziam Fix
resmungar. Mas Aouda e Fogg, sem demonstrar medo, ficaram juntos o tempo todo
enquanto o vendaval soprava sem cessar.
Decidido a levar Fogg para
Xangai, o capitão do "Tancadera" enfrentou as ameaças do mar sem
naufragar, até que finalmente a tempestade terminou.
Infelizmente haviam perdido
muito tempo, e tinham apenas um dia para chegar a Xangai antes que o vapor
partisse, às sete horas da manhã do dia 11.
Quando, finalmente, iam se
aproximando de Xangai, viram ao longe o grande navio deixando o porto para
cruzar o oceano Pacífico.
— Nós o perdemos! — exclamou o
capitão, desanimado.
— Ainda não — disse Fogg, tendo
uma ideia. — Coloquem a bandeira a meia haste e disparem um tiro de canhão,
como quem pede ajuda!
E os marinheiros correram a
fazer o que ele sugeria.
Mas o que havia realmente
acontecido a Passepartout? Sem nem desconfiar de que fora traído por Fix, o
pobre rapaz dormira demais, por efeito do vinho e do ópio. Quando despertou, já
era noite e a única coisa de que ele se lembrava era que deveria estar a bordo
do "Carnatic".
Saiu correndo, ainda zonzo, para
o porto; subiu a prancha para a amurada do navio no momento exato em que ele
estava partindo. E dormiu de novo.
Apenas no dia seguinte, quando o
vapor já estava a muitos e muitos quilômetros da China, foi que ele acordou e
teve consciência do que acontecera e da armadilha que Fix lhe armara. Percorreu
o navio inteiro à procura do patrão, e lembrou-se de que não havia avisado Fogg
sobre a mudança no horário da partida. Por isso, acreditava que seu patrão
havia perdido o navio e certamente também perderia a aposta, tudo por culpa da
traição do detetive!
Mais um problema transtornava o
pobre criado. O saco de viagem ficara com Fogg, no hotel, e ele se encontrava
absolutamente sem dinheiro. Sua passagem no "Carnatic" estava paga,
mas o que aconteceria quando o navio chegasse ao porto? Estaria sozinho, sem um
tostão, do outro lado do mundo!
Quando o navio ancorou no Japão,
no dia 13, ele teve de desembarcar na Terra do Sol Nascente. Andou por Yokohama
apreciando a multidão vinda de todas as partes do globo, as lojas e bazares, os
restaurantes e as casas japonesas. Não sabia o que fazer. Afinal, depois de
andar por um dia, teve a ideia de vender suas roupas europeias, vestir-se como
o povo do local e tentar arrumar algum tipo de trabalho para sobreviver.
Foi para o porto, à procura de
um navio que fosse para a América, onde pudesse empregar-se como cozinheiro ou
criado, em troca da passagem. A caminho, viu um cartaz que anunciava um grupo
de acrobatas japoneses que iriam apresentar-se pela última vez antes de partir
para os Estados Unidos.
Pensando que seria mais fácil
chegar à Europa partindo da América, o jovem foi pedir emprego aos acrobatas.
Embora o dono da companhia não precisasse de criado, acabou contratando o
francês como palhaço.
Eles iam partir para os Estados Unidos dali a
uma semana e estavam preparando seus últimos espetáculos em uma grande barraca
circense no centro da cidade. O espetáculo daquela tarde, que constava de
malabarismo, acrobacias, mágicas e outros truques terminaria com uma
sensacional pirâmide humana, formada por dezenas de ginastas. Como um dos
acrobatas havia se demitido, o dono mandou que Passepartout o substituísse,
ajudando a formar a base da pirâmide.
E lá estava o rapaz sob uma
pirâmide feita de acrobatas montados uns nos outros, com centenas de
espectadores aplaudindo, quando olhou para a plateia... e ali, no meio de toda
aquela gente, avistou seu patrão acompanhado da bela Aouda!
Com um grito de satisfação e
espanto, ele correu para Fogg, sem se lembrar de que estava sob dezenas de
ginastas... e a pirâmide despencou inteira! Mas o francês só estava preocupado
em alcançar seu patrão, que também o vira. Finalmente haviam-se encontrado.
Não perderam tempo conversando.
O navio ia partir dali a pouco para São Francisco. Os três correram feito
loucos para o porto, onde chegaram às seis e meia, bem na hora em que o vapor
erguia âncora e largava!
Após embarcarem, Passepartout contou ao patrão e à
jovem indiana as suas desventuras, sem esquecer de mencionar a traição de Fix.
Aouda contou ao criado a viagem no "Tancadera" e a tentativa
desesperada de embarcarem no "General Gram". Ao ver o iate disparar
um tiro e colocar a bandeira a meia haste, o vapor foi até eles e permitiu que
Fogg e sua companheira embarcassem. Assim, no tempo previsto, eles haviam
seguido de Xangai para Yokohama.
Chegando ao porto japonês em 14
de novembro, descobriram que o francês viajara no "Carnatic" e
desembarcara na cidade. Com pouco tempo antes que o vapor partisse de vez para
a América, Fíleas e Aouda andaram pela cidade tentando de toda forma encontrar
o criado. E, por acaso, haviam entrado na barraca dos acrobatas, onde deram com
ele vestido de palhaço e servindo de base à pirâmide!
Agora estavam os três juntos de
novo, a bordo do rápido navio; Fogg tinha certeza de que estaria em São
Francisco no começo de dezembro. De lá, restar-lhe-ia atravessar os Estados
Unidos de trem, indo para Nova York, onde tomaria outro navio para a
Inglaterra. Chegaria a tempo de ganhar a aposta, com certeza!
O que ele não sabia era que o
detetive não desistira: ao chegar em Yokohama, Fix fora para o Consulado
inglês, onde encontrara à sua espera o famoso mandado de prisão contra Fogg!
Infelizmente agora ele não se encontrava mais em território britânico, e por
isso não tinha autoridade para prender o suspeito, a não ser que conseguisse
uma ordem de extradição — o que levaria dias, talvez semanas.
Tomou então a decisão de
continuar seguindo o cavalheiro até que pudesse obter sua extradição. Comprou
passagem no "General Grant" e embarcou antes de Fogg, tratando de
ficar bem escondido quando viu que Passepartout havia sido encontrado. Sua
situação mudara, pois todos, agora, não podiam deixar de saber quem ele era.
Capítulo 7:
Uma surra e um tumulto
Durante a última quinzena de
novembro, o navio "General Grant" atravessou o oceano Pacífico, indo
para a costa oeste dos Estados Unidos. Foi uma travessia tranquila, provando
que aquele oceano era mesmo pacífico...
Chamamos antípoda
uma região que fica no extremo oposto do globo terrestre em relação a alguma
outra região. Por exemplo, o Brasil e o Japão são antípodas. Já o local antípoda
a Londres fica no oceano Pacífico, e assim por diante.
|
Nove dias após deixarem
Yokohama, em 23 de novembro, o navio passou pelo meridiano exatamente antípoda a Londres. Fogg estava
viajando há 52 dias, restando-lhe apenas 28 dos oitenta dias planejados para a
viagem. Encontrava-se exatamente no meio do caminho, no extremo oposto da
Terra; mas havia percorrido já dois terços de sua viagem, por causa dos desvios
que tivera de fazer, pelos mares Mediterrâneo, Vermelho, da Arábia e da China.
— Agora — dizia ele a Aouda —
resta-nos apenas a parte mais fácil da viagem.
Pelo menos era o que ele
achava...
Quanto a Passepartout, naquele
dia seu relógio — que ele se recusava a acertar — quase marcou a hora certa! Na
verdade, estava adiantado 12 horas, pois haviam percorrido metade do mundo, e,
se ali no Pacífico era meio-dia, em Londres seria meia-noite...
A proa
é a parte dianteira de um navio; a popa é a parte traseira.
|
Logo no começo da travessia do Pacífico,
o francês encontrou Fix a bordo, na proa
do navio. Não perdeu tempo e caiu de socos sobre ele, dando-lhe uma bela surra.
Fix tentou defender-se, mas acabou apanhando sem reclamar.
— Podemos conversar, agora? —
disse o detetive, todo dolorido pela sova. — Sei que eu mereci apanhar, mas
daqui para a frente tudo será diferente. Não vou mais tentar atrapalhar a
viagem de seu amo, em vez disso vou ajudá-lo a chegar a Londres.
— Por que faria isso? —
estranhou Passepartout.
— Porque o quanto antes o Senhor
Fogg chegar à Inglaterra mais depressa saberemos se ele é realmente um bandido
ou um homem honesto. Podemos ser amigos?
Ainda furioso, o criado de
Fíleas respondeu:
— De jeito nenhum! Ao primeiro
sinal de traição eu torço o seu pescoço.
Assim, pelo menos, não houve
mais brigas entre eles. E tão previsível foi o restante da viagem que, no dia 3
de dezembro, às sete horas da manhã, chegavam a São Francisco, nos Estados
Unidos da América.
Passepartout acreditava que
encontraria nos Estados Unidos um cenário do Velho Oeste, com aventureiros armados
em busca de ouro. Em vez disso, encontrou uma cidade grande, civilizada,
repleta de veículos e de negociantes.
Logo ao chegar, Fogg ficou
sabendo que o trem para Nova York sairia às seis horas da tarde. Alugou então
uma carruagem e foi, com a moça e o criado, para um hotel tão agradável quanto
os hotéis de Londres, onde fizeram uma boa refeição.
Depois, Fogg resolveu fazer um passeio com
Aouda, enquanto Passepartout ficava no hotel, pensando se deveria comprar armas
ou não, pois estava ainda certo de que o território americano era muito
perigoso e cheio de facínoras. E, mal o cavalheiro inglês e sua companheira
saíram, encontraram-se cara a cara com Fix!
O detetive fez de conta que nada
havia acontecido no Oriente Médio e na Ásia; disse que iria fazer o mesmo caminho
que eles de volta à Europa e pediu-lhes permissão para acompanhá-los no
passeio.
Fogg, que sabia muito bem o que
o detetive queria, fingiu não saber de nada e aceitou sua companhia. E foram
passear pelas apinhadas ruas de São Francisco.
Infelizmente, naquele dia algo
tornava as ruas mais cheias que de costume: estava acontecendo um comício político,
com dois homens enfrentando-se. E os partidários de um e de outro não paravam
de arrumar brigas no meio do povo.
Carregavam cartazes dos dois adversários,
berravam seus nomes, jogavam objetos uns nos outros e batiam em quem quer que
lhes aparecesse pela frente. Fix e Fogg logo viram que tinham de sair das ruas
para evitar encrencas. Porém era tarde demais... ao tentar escapar da multidão,
viram-se entre dois grupos que se agrediam a murros. Tentando proteger Aouda,
os dois se dispuseram a bater em quem os atacava. Foi então que um americano
alto e ruivo deu um enorme soco na cabeça de Fix, achatando seu chapéu e
deixando-o zonzo. Fogg enfrentou o americano, apresentou-se e perguntou como o
outro se chamava.
— Coronel Proctor.
— Pois ainda nos encontraremos e
acertaremos as contas, coronel.
E tratou de ajudar Fix a
levantar-se e a tirar Aouda do meio da confusão. Quando conseguiram sair de lá,
estavam os dois com as roupas rasgadas, e Fix todo inchado pelo soco de
Proctor. Tiveram de ir a uma loja de roupas para livrar-se dos temos rasgados e
vestir-se decentemente.
Quando voltaram ao hotel,
encontraram Passepartout, que havia comprado vários revólveres. O francês ficou
furioso ao ver Fix, mas Aouda explicou-lhe que o detetive os havia ajudado e
contou o acidente com o coronel, com quem Fogg parecia disposto a duelar. O
criado acalmou-se, e todos se prepararam para ir embora.
Na estação de trem, Fíleas indagou qual o
cargo que os tais políticos disputavam com tanta emoção e tumulto. Surpreso,
soube que um deles seria eleito... juiz de paz!
O trem deixou São Francisco às
seis da tarde e começou a percorrer a linha férrea que ia de um oceano a outro,
cortando ao meio os Estados Unidos da América.
Capítulo 8:
Através do Oeste americano
A estrada de ferro americana era
uma obra de engenharia impressionante. De São Francisco, na Califórnia, ia até
Ogden, próximo a Salt Lake City. De lá, outra ferrovia ia para Omaha. E, do centro dos Estados
Unidos, a linha férrea seguia para diversos destinos, inclusive Nova York.
Dessa forma, cortando desertos, montanhas, pradarias e cidades, o trem levaria
sete dias para atravessar o país. Pelos cálculos de Fogg, chegariam a Nova York
dia 11, a tempo de tomar um navio que partiria para Liverpool.
Salt Lake City significa precisamente Cidade do Lago Salgado.
|
Fíleas, Aouda e Passepartout —
acompanhados por Fix, que não desgrudava deles — instalaram-se num vagão, e a
viagem começou. O primeiro dia se passou tranquilamente, apesar de estar nevando,
com algumas paradas em pequenas estações. À noite, para dormir, abriram-se
leitos embutidos que sumiam durante o dia.
No dia seguinte, à tarde, uma
grande manada de búfalos se pôs a atravessar a linha férrea. O maquinista
tentou avançar, mas eram mais de 10.000 animais e, se não parasse, o trem
poderia descarrilar. Os passageiros não tiveram outro jeito senão ficar
admirando a impressionante passagem dos búfalos, que durou mais de três horas.
Somente à noite o trem pôde
continuar sua marcha.
Pela manhã haviam chegado à
região do Grande Lago Salgado, onde ficava a cidade de Salt Lake. E à tarde o
trem parava na estação de Ogden. Ali os passageiros desembarcaram para tomar o
trem que os levaria a Omaha, que partiria às seis horas.
O terreno que iam atravessar em seguida
passava pelas Montanhas Rochosas e atravessava regiões selvagens e perigosas. O
tempo piorou, e Passepartout se preocupava com a demora que a neve poderia acarretar
na viagem de seu patrão.
Fogg continuava sem demonstrar a
menor inquietação. Aouda, porém, estava muito agitada. Aconteceu que, numa das
paradas do trem, ela vira, pela janela, aquele americano violento que atacara
Fix em São Francisco: o Coronel Proctor estava a bordo: Não desejando falar
disso a Fíleas, contou ao criado francês e ao detetive.
Fix e Passepartout perceberam
que tinham de impedir, a todo custo, que Fogg visse o coronel no trem. Com seus
pensamentos de honra e cavalheirismo, certamente desafiaria o homem para um
duelo. E, quer vencesse, quer perdesse, isso iria arruinar suas possibilidades
de ganhar a aposta.
O detetive teve uma ideia para
impedir que Fogg deixasse o vagão que ocupavam: sugeriu que Passepartout
comprasse um baralho, e convidou o inglês para jogar cartas. Fíleas, que
adorava o baralho, aceitou. E o tempo foi passando...
Quando estavam terminando a
travessia das Montanhas Rochosas, porém, o trem parou de repente. Alguns
passageiros desceram querendo descobrir qual seria o problema; para sossego de
Aouda, Fogg pediu a Passepartout que fosse investigar.
O maquinista e o condutor do
trem explicaram que haviam encontrado um sinal de perigo, avisando que uma
ponte, alguns quilômetros à frente, não era segura.
Uma ponte
sustentada por colunas, das quais ela pende por meio de cabos suspensos.
|
Era uma ponte pênsil sobre um
rio de águas revoltas: alguns de seus cabos estavam arrebentados. O peso do
trem, mais o dos passageiros, sobre ela terminaria de derrubá-la. O jeito seria
todos desembarcarem e andarem até outra estação, distante uns trinta
quilômetros, para esperar outro trem. Mas os viajantes não estavam dispostos a
andar tanto no meio da neve, e alguém veio com outra solução.
Um dos passageiros americanos sugeriu
que o trem se lançasse a toda velocidade pela linha que acompanhava a ponte.
Acreditava que, levado pela inércia,
o trem inteiro atravessaria o abismo, com ou sem ponte.
Inércia é a resistência
que todo corpo tem a mudar seu estado de movimento. Se um veículo está
correndo, demora para parar por causa da inércia,
que o faz continuar movendo-se.
|
Passepartout ficou de boca
aberta com a audácia do homem. A maioria dos passageiros que desembarcara queria
experimentar o método sugerido, inclusive o tal Coronel Proctor, um dos mais
furiosos. Para o francês, seria bem mais prudente se os passageiros
atravessassem a ponte a pé e o trem tentasse passar depois... mas ninguém quis
ouvir a sua sugestão. Convenceram o maquinista a fazer a tentativa, e no final até
o próprio Passepartout acreditou que fosse possível.
Todos voltaram ao trem. O
maquinista fez a locomotiva recuar um pouco, e retomou a marcha na maior
velocidade possível. Quando se aproximou do abismo cortado pela ponte, o trem
estava a mais de 100 quilômetros por hora! E voou de uma margem a outra, sem
diminuir a velocidade...
Só vários quilômetros adiante
foi que o maquinista pôde fazer o veículo voltar à velocidade normal. Então
viram que a ponte havia desabado depois de sua passagem!
Haviam transcorrido já três dias
de viagem, e tudo indicava que chegariam ao destino na hora prevista. Estavam
atravessando as terras do estado de Nebraska, faltando pouco para Omaha, quando
nova encrenca sucedeu.
Fogg e Fix continuavam jogando
cartas; um homem os viu da porta do compartimento e resolveu dar palpites no
jogo. Quando Fíleas se voltou... viu que era o Coronel Proctor, o americano
fanfarrão com quem esperava duelar um dia!
Os dois discutiram, e Proctor se
mostrou ainda mais mal-educado. Fix exclamou:
— Quem tem de entender-se com o
coronel sou eu, que fui agredido por ele!
— Sinto muito, mas ele acaba de
insinuar que eu não sei jogar cartas, portanto acaba de me ofender, e desejo
tirar satisfações — disse calmamente Fogg.
Apesar de Aouda, Fix e
Passepartout tentarem acalmar os dois, não houve jeito: estavam se aproximando
da estação em uma cidadezinha, e ambos combinaram que iriam desembarcar no
local e bater-se em duelo.
Fogg pediu a Fix que fosse sua
testemunha no duelo, e depois pôs-se a jogar cartas com a maior calma do mundo,
enquanto Aouda se desesperava. Quando o apito do trem avisou que se aproximavam
da cidadezinha em questão, levantou-se...
Mas ele e o coronel, que já se
aprontavam para desembarcar, tiveram de mudar seus planos, pois o condutor avisou
que o trem estava com vinte minutos de atraso e que, para recuperar o tempo,
não pararia na tal estação.
Se queriam duelar, teriam de
fazer isso num dos vagões, com o trem em movimento. Como estavam decididos a
terminar com aquele assunto, os dois trataram de ir para o último vagão, cada
um com um revólver, prontos a ver qual deles iria sobreviver...
Fogg e Proctor entraram no
comprido vagão e fecharam a porta. Iriam esperar para disparar um contra o
outro ao primeiro apito do trem. Fora do vagão, o coração de todos batia forte
de emoção. E foi então que se ouviram gritos e tiros.
Porém, coisa estranha! Os tiros
não vinham de dentro do vagão. Vinham de fora! O trem estava sendo atacado por
uma cavalgada dos índios Sioux, que disparavam tiros de espingarda contra a
locomotiva!
O duelo foi suspenso, e todos os
que estavam armados se dirigiram às janelas, de onde começaram a atirar nos
índios. Estes já estavam abordando o trem, e haviam ferido o maquinista e o
foguista. Sem saber como mexer nos controles para parar a locomotiva, um índio
havia aberto a válvula de vapor, e a composição desandara a correr com maior
rapidez ainda, atingindo velocidade vertiginosa!
Até Aouda tratou de pegar um dos
revólveres que Passepartout comprara e se pôs a disparar pela janela quando
algum índio se aproximava e tentava subir no trem.
Fogg viu que a situação era
insustentável. Estavam perto da cidade de Kearney, onde havia um forte; mas se
o trem não parasse antes que chegassem lá, todos seriam mortos pelos índios e
não haveria tempo para que os soldados os socorressem.
Ouvindo o que seu patrão dizia,
Passepartout tomou uma decisão. Iria parar aquele trem, de qualquer jeito! E,
lembrando-se de quando fora ginasta, abriu uma porta e começou a se arrastar
por baixo dos vagões, indo para a locomotiva.
Conseguiu chegar ali e tentou
desengatar os vagões da máquina que os puxava. Não foi fácil, mas os solavancos
do trem o ajudaram. Livre do peso, a locomotiva partiu mais depressa ainda, e o
trem continuou a rodar, ainda levado pela inércia, mas diminuindo a velocidade
até parar.
Foi a conta! Pararam quase na
estação de Kearney, e os soldados do forte; ouvindo os tiros, logo montaram
seus cavalos e correram em auxílio dos passageiros.
Os índios, ouvindo a cavalaria,
trataram de fugir. E todos puderam descer na estação, a salvo... Bem, não
todos. Quando foram contar quantas pessoas estavam presentes, descobriu-se que
faltavam três viajantes... inclusive Passepartout.
Estaria morto? Ou fora levado
prisioneiro pelos índios? Decidido a encontrar seu criado, ou a morrer tentando,
Fogg avisou que iria voltar, perseguindo a trilha dos Sioux, para descobrir o
que fora feito do francês.
Fix, que jurara não se separar
de seu suspeito, queria ir também.
Mas Fíleas o fez prometer que
ficaria junto de Aouda, e que a levaria para a Europa, caso algo lhe
acontecesse. Sem outra escolha, o detetive concordou.
O capitão do forte designou um
sargento e trinta soldados para acompanhar Fogg, e logo mais os 32 montavam e
partiam na trilha dos atacantes.
As horas que se seguiram foram
insuportáveis. Caía a neve, e Aouda pensava em Fogg, que considerava um herói.
Já Fix achava que tinha sido tolo em deixá-lo partir; acreditava que o inglês
se internaria pelas terras americanas, escapando assim da prisão.
À tarde a locomotiva que tinha
seguido à frente apareceu na estação de Kearney, trazida pelo maquinista e pelo
foguista, já recuperados dos ferimentos. Com a máquina de volta, bastaria
engatá-la nos vagões e a viagem prosseguiria.
Mas não havia nem sinal de Fogg ou dos
soldados. O trem ia partir, e Aouda recusou-se a embarcar. Ficaria na estação
esperando por seu salvador e amigo. Fix, sem saber o que fazer, resolveu ficar
com ela. O trem partiu, afinal... e a noite chegou.
Foi uma noite longa e fria. Pela
manhã, o capitão do forte pensava em mandar alguns soldados à procura dos
sumidos, quando ouviram tiros. Saíram todos, e viram o grupo que voltava, a
certa distância, fazendo-lhes sinais. Eram o sargento, os soldados, Fogg e os
três passageiros que os índios haviam aprisionado, inclusive Passepartout!
O grupo havia chegado bem a
tempo de libertar os três, cercados por dezenas de índios. O capitão acolheu
seus soldados com elogios, Aouda tomou, emocionada, a mão de Fogg, e Fix não
sabia o que dizer. Passepartout estava furioso.
— Onde está nosso trem?!
Mais furioso ainda ficou ao
saber que o trem partira, e que somente naquela tarde outro trem chegaria para
levá-los a Omaha. Ao ouvir falar nisso, Fíleas Fogg, ainda de mãos dadas com
Aouda, disse apenas:
— Ah.
Capítulo 9:
E agora?
O atraso era de um dia. Se não
tivesse perdido o trem, Fogg chegaria a Nova York dia 11 pela manhã, com tempo
sobrando, pois o navio para a Inglaterra partiria às dez e meia da noite.
Passepartout estava desesperado,
achando que o amo perderia a aposta por ter voltado para salvá-lo dos índios. E
Fix, que andara conversando com as pessoas do local, começou a fazer contas.
— Senhor Fogg, faltam vinte
horas para o navio partir. Se esperarmos o próximo trem chegar, não estaremos
lá a tempo. Mas, se conseguirmos outra forma de chegar depressa em Omaha, ainda
conseguiremos embarcar para Chicago e Nova York.
— Não podemos ir a pé — comentou
Fíleas.
— Mas podemos ir de trenó! —
sugeriu o detetive.
Um dos homens com quem ele havia
conversado tinha um trenó a vela, que parecia um barquinho sobre esquis,
próprio para andar na neve. O dono dizia que seria possível ir velejando pela
neve sólida até Omaha.
Não havia outro jeito. Fogg
contratou o homem e, às oito horas daquela manhã, os quatro viajantes
embarcaram no pequeno veículo: Fíleas, Aouda, Passepartout... e Fix. O homem
içou as velas, eles se encolheram uns junto dos outros, e o trenó começou a
deslizar sobre a neve.
Com as velas captando o vento
gelado que soprava, logo o trenó estava correndo vertiginosamente, a mais de
sessenta quilômetros por hora! Foi a viagem mais incrível da vida de nossos
amigos: deslizavam sobre a planície como se estivessem voando. Viam passar
campinas geladas, árvores sem folhas, aves selvagens... e lobos. Várias vezes
foram seguidos por alcateias de lobos famintos, que se aproximavam
perigosamente. Passepartout estava sempre a postos para atirar neles, se fosse
preciso, mas o trenó continuava em sua marcha veloz e os lobos nunca os
alcançaram.
Passava de meio-dia quando viram
um povoado ao longe. Haviam chegado a Omaha! Sem perder tempo, correram para a
estação ferroviária. Um trem estava justamente partindo para Chicago.
Mal tiveram tempo para
acomodar-se. O trem partiu e percorreu velozmente o território de dois estados,
enquanto anoitecia. No dia seguinte, às quatro horas da tarde, chegavam a
Chicago, grande cidade americana que fica às margens do lago Michigan.
Nem pararam para fazer turismo.
Fogg os fez passarem de um trem a outro, pois uma composição partiria
imediatamente para Nova York, que ficava a 1.700 quilômetros de Chicago. E lá
se foi mais um trem, cortando quatro estados, em direção à estação junto ao rio
Hudson, que deságua no oceano Atlântico, e onde ficava o embarcadouro.
Eram onze e quinze da noite
quando pisaram no local. O navio "China", que seguia para Liverpool,
havia partido havia 45 minutos...
Parecia que a aposta de Fíleas Fogg estava
perdida. Nenhum outro navio partiria para a Inglaterra nos próximos dias, e se
fossem para a França não haveria tempo útil para chegarem a Londres antes do
dia 21 de dezembro. O que fazer?
Manhattan
é uma ilha, no estuário do rio Hudson, onde se localiza o centro da cidade de
Nova York.
|
Passaram a noite num hotel da
Broadway, em Manhattan. Passepartout
não conseguia dormir, pensando que tudo aquilo era sua culpa... mas seu patrão
dormiu tranquilamente, como se não estivesse quase perdendo 20.000 libras.
No dia seguinte, logo cedo, Fogg
foi percorrer as margens do rio Hudson à procura de um navio que seguisse para
a Inglaterra. Encontrou um barco de carga que parecia prestes a partir.
Apresentou-se a seu dono, o capitão Speedy.
— Para onde o senhor vai? Leva
alguma carga?
— Em uma hora sigo para Bordeaux,
na França. Não levo carga, apenas lastro.
Os navios, em geral, só podem navegar com um
certo peso a bordo. Por isso, quando urna embarcação não leva carga ou
passageiros, carrega o que se chama lastro em seus porões: pedras, fardos ou
quaisquer objetos pesados para que seja possível ao navio viajar em
segurança.
|
— Não quer levar quatro
passageiros para Londres? Pago bem pelas passagens.
— Nada disso. Resolvi ir para
Bordeaux, e é para lá que eu vou.
Fíleas pensou um pouco. Aquele
navio era sua última esperança...
— Então, tudo bem: aceitaria
levar quatro passageiros a Bordeaux?
— Não gosto de transportar
passageiros — negou-se o homem.
— Pago dois mil dólares por
pessoa — acrescentou Fogg.
O homem abriu a boca. Receber
oito mil dólares, sem ter de mudar seu itinerário, valia a pena. Concordou, e
avisou que partiriam às nove horas.
O navio chamava-se
"Henrietta", tinha o casco metálico e a armação de madeira, e era bem
rápido. Se o vento ajudasse, chegariam à França no dia 21 de dezembro.
Capítulo 10:
Um motim e um novo porto
Nem dois dias haviam se passado
da partida dos Estados Unidos e Fíleas Fogg estava tomando providências para
mudar o destino do "Henrietta". Como? Fez-se amigo dos marinheiros e
convenceu-os do que não havia convencido o capitão: de que ganhariam muito
dinheiro se, em vez de ir à França, dirigissem o barco para a Inglaterra!
O que Fogg causara se chamava,
na verdade, um motim. Os marinheiros, descontentes com a antipatia do dono do
barco, resolveram aceitar o dinheiro oferecido pelo inglês e rumar para o porto
de Liverpool. Speedy brigou, esbravejou, berrou, mas não conseguiu fazê-los
mudar de ideia. E foi trancado em seu camarote, enquanto o cavalheiro tomava o
leme e pilotava em seu lugar...
Os primeiros dias de viagem transcorreram
com tempo ameno e mar em boas condições, as velas recebendo um bom vento
Nordeste. Passepartout estava radiante; apreciava cada vez mais aquele patrão
capaz das mais ousadas aventuras. Já Fix estava em puro estado de desespero.
Vira como Fogg manobrara para tomar o navio, e estava convencido de que, além
de ladrão, o inglês era um pirata — pensava até que ele nunca voltaria à
Inglaterra, mas ficaria navegando pelo mundo praticando a pirataria...
Após o dia 17 de dezembro, a
temperatura caiu e o vento mudou para Sudeste, ameaçando transformar-se num
furacão. Mesmo assim, valendo-se das caldeiras a carvão, o
"Henrietta" se manteve no curso e dentro do prazo.
Porém mais problemas estavam
para acontecer. No dia 18, um dos marinheiros procurou Fogg, a quem todos agora
chamavam de capitão, para avisar que o carvão estava acabando.
— Tínhamos combustível para
chegar a Bordeaux, mas ele não será suficiente para irmos à Inglaterra —
explicou o homem.
Realmente, Liverpool ficava bem
mais ao Norte, no mar da Irlanda. Fogg pensou um pouco no que poderia fazer, e
mandou Passepartout trazer o capitão Speedy.
Solto do camarote, o homem subiu
ao tombadilho xingando o inglês de pirata, bandido, e outros adjetivos
simpáticos. Mas parou, boquiaberto, quando o outro propôs:
— Venda-me o seu navio. Pago por
ele 60.000 dólares.
O homem sabia que o barco não
valia tudo aquilo; era uma oferta que não podia recusar. Só não estava
entendendo o porquê de tal proposta.
— É simples — explicou-lhe Fogg.
— Preciso queimar o madeiramento do navio, pois o carvão se acabou e ainda
estamos a uns 1.500 quilômetros de Liverpool. Se concordar, o navio é meu e
posso queimar tudo que for feito de madeira. O casco de ferro e as máquinas
ficam para o senhor.
O capitão Speedy parou de xingar
Fogg na hora e tratou de elogiá-lo o mais que podia. O negócio estava feito. E
Fogg mandou os marinheiros começarem a desmontar a armação do tombadilho, dos
camarotes e dos beliches... para queimar.
Nos dois dias que se seguiram,
tudo o que fosse feito de madeira foi sendo transformado em combustível,
enquanto o navio avançava para o Norte. No dia 20 eles avistaram a costa da
Irlanda. Faltavam 24 horas para o momento final da aposta, e não havia tempo
útil para o navio chegar a Liverpool e eles partirem de lá para Londres. O
capitão Speedy comentou:
Hoje, a cidade de Queenstown se chama Cobh. Mudou de nome em1922, quando a Irlanda
se tornou livre do domínio da Inglaterra. Queenstown significa "cidade
da rainha".
|
— Sinto muito que perca sua
aposta. Ainda estamos à vista de Queenstown,
falta muito para Liverpool.
Fogg olhou a cidade que se via
ao lado do porto, na costa da Irlanda. Lembrou-se de que a correspondência que
vem dos Estados Unidos para a Europa é deixada pelos navios em Queenstown, de
onde vai, de trem, para Dublin, capital da Irlanda, e de lá segue para Liverpool
em navios bem mais rápidos que os de passageiros. Se ele pudesse ir a Dublin,
teria a possibilidade de chegar a Londres em 20 horas — quatro horas antes das
oito e quarenta e cinco da noite!
— Vamos aportar em Queenstown —
decidiu. E foi à uma hora da madrugada que o "Henrietta", que agora
era um casco quase totalmente pelado, entrou no porto irlandês. Em meia hora
estavam na estação ferroviária, tomando um trem para Dublin. Chegaram lá quando
amanhecia, e Fogg lhes conseguiu passagem num dos barcos a vapor dos correios,
que os levaria a Liverpool.
Chegaram quando era quase
meio-dia de 21 de dezembro. Havia tempo de sobra para tomarem outro trem e irem
para Londres, onde Fogg ganharia a aposta! Porém, no momento em que
desembarcaram, Fix tirou do bolso a ordem de prisão que viajara o mundo todo
com ele, pôs a mão no ombro do cavalheiro e declarou: — Fíleas Fogg, em nome da
Rainha, considere-se preso!
Capítulo 11:
Uma decepção e uma surpresa
Agora não havia escapatória. A
ordem de prisão de Fix era legal, fosse Fogg culpado ou não — isso caberia a um
juiz decidir.
O problema é que um julgamento
demoraria dias, e só restavam pouco mais de oito horas para que ele comparecesse
ao salão do Clube, provando que era possível dar-se a volta ao mundo em 80
dias.
Como havia gastado quase toda a
quantia que levara para a viagem — 20.000 libras —, só lhe restavam, no banco,
outras 20.000 libras, que constituíam o total de sua fortuna. E, se perdesse,
bastaria aos seus amigos descontar o cheque que ele havia lhes deixado, em
confiança. Resumindo: se não escapasse da sala gradeada na Alfândega, em que a
polícia o tinha aprisionado, Fíleas Fogg estaria completamente arruinado.
O tempo passava. Do lado de fora
da Alfândega, Aouda e Passepartout esperavam, condoídos. O que seria do cavalheiro,
agora?!
Eram duas e meia da tarde quando
Fix reapareceu, descabelado e aflito.
— Foi tudo um engano! O ladrão
do banco foi preso há três dias! O sr. Fogg é inocente... Está livre para ir.
Pela primeira vez na vida,
Fíleas não ficou impassível. Erguendo o braço, deu tamanho murro na cara do
detetive que o derrubou no chão. Depois, tratou de reunir-se ao criado e à
dama, tomar uma carruagem e correr para a ferrovia.
Não havia nenhum trem partindo
de Liverpool para Londres naquele momento. Ele foi falar com os encarregados e
fretou um trem especial. Tinha apenas cinco horas e meia para chegar à capital
da Inglaterra!
Afinal o trem fretado parou na
estação, e eles desceram. Segundo o relógio de Fogg, eram oito horas e 50
minutos do sábado...
Por cinco minutos, ele havia
perdido a aposta!
O inglês não comentou nada, nem
demonstrou a menor emoção. Mandou que Passepartout fosse comprar alguns
mantimentos e seguiu para sua casa na Rua Saville, com Aouda. Instalou a dama
num quarto de hóspedes e trancou-se no seu, de onde não saiu até a manhã
seguinte.
A moça e o criado estavam muito
preocupados. Será que Fíleas, sabendo que estava reduzido à pobreza, não
tentaria alguma loucura, como o suicídio? Mas nada puderam falar com ele, que
continuava encerrado no quarto, até que na noite de domingo pediu para
conversar com Aouda.
— Sinto muito tê-la trazido à
Inglaterra nessas condições — disse a ela —, mas cuidarei para que não lhe
falte nada.
— O que vai ser do senhor?! —
ela indagou, aflita. — Não tem parentes e amigos que possam ajudá-lo?
— Não tenho ninguém, minha
senhora.
— Pois agora tem — resolveu
Aouda, tomando a mão dele. — Serei sua família e sua amiga. Case-se comigo.
Ele não soube o que dizer.
Olhou-a, demonstrando naquele olhar que estava apaixonado. Finalmente conseguiu
dizer:
— Eu a amo!
Não perderam tempo em chamar
Passepartout e dizer-lhe que precisavam de um ministro, para uma cerimônia de
casamento. Feliz da vida ao ver como tudo se resolvia, o francês se propôs a
sair naquela noite mesmo para falar com um certo reverendo Wilson, da paróquia
mais próxima.
— São oito horas e cinco minutos
— ele conferiu. — O reverendo deve ainda estar na paróquia. Marcaremos o
casamento para amanhã, segunda-feira.
E os dois, olhando-se
apaixonadamente, concordaram em casar-se no dia seguinte, segunda-feira.
Passepartout saiu correndo para
encontrar o ministro.
O que eles não sabiam era que,
após os jornais noticiarem a prisão do verdadeiro ladrão do Banco da
Inglaterra, no dia 17 de dezembro, o país inteiro se lembrara de que a aposta
feita entre Fogg e os sócios do Clube Reformador estava prestes a encerrar-se.
Caso o cavalheiro não aparecesse
no Clube até as oito horas e 45 minutos da noite de sábado, dia 21 de dezembro,
teria perdido 20.000 libras. Como os ingleses adoram apostar, centenas de
pessoas estavam apostando no resultado — algumas contra, outras a favor de
Fogg. E, quando chegou a noite em questão, lá estavam os amigos no salão.
O tempo passava. O relógio bateu
oito horas. Oito e meia. Oito e quarenta. E nada...
— Ele não vem — disse um dos
homens. — O último trem de Liverpool
chegou há mais de uma hora. Se Fogg tivesse vindo nele, já estaria aqui.
— Vamos esperar — retrucou outro
membro do Clube. — Fogg é pontual. Pode ser que chegue no último minuto.
A emoção era enorme. Ninguém
conseguia tirar os olhos do relógio... E foi assim que, quando eram exatamente
oito horas e 44 minutos, a porta do salão se abriu, e Fíleas Fogg entrou no
recinto!
— Aqui estou — disse ele, com a
calma de sempre.
Por um minuto, a aposta foi
vencida!
Capítulo 12:
A volta ao mundo... em 79 dias?
Mas como isso teria sido possível,
se ele havia chegado em Londres às oito e cinquenta?!
Ao sair de casa para ir falar
com o reverendo Wilson, Passepartout estava apressado. Mais apressado ainda
ficou ao deixar a paróquia, às oito horas e 35 minutos. Corria feito louco e,
em poucos instantes, entrava na casa da Rua Saville, berrando:
— Senhor! ... O casamento... Não
pode ser amanhã...
— Por quê? — indagou Fogg,
estranhando tanta agitação.
— Porque amanhã não é
segunda-feira... é domingo, dia 22 de dezembro! O senhor se enganou por um dia:
hoje é dia 21, e faltam só dez minutos para as oito e 45!
E arrastou o patrão para fora de
casa. Sem ter tempo de pensar, Fogg tomou uma carruagem e prometeu uma bela
gorjeta ao condutor se o levasse para o Clube o mais rapidamente possível. A
carruagem disparou pelas ruas de Londres...
E, quando o relógio do Clube
Reformador bateu oito horas e 45 minutos, Fíleas Fogg estava no salão, com os
amigos. Havia ganhado a aposta, afinal!
Como poderia, porém, um homem
tão metódico e pontual ter-se enganado em 24 horas nos seus cálculos?! A
explicação estava na direção que tomara, ao viajar.
Se Fogg tivesse viajado no sentido Oeste, teria
perdido uma hora a cada meridiano que atravessasse, já que para Oeste o fuso
horário faz com que seja sempre mais cedo do que a Leste.
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O cavalheiro tinha dado a volta
ao mundo viajando para o Leste e, por
isso, a cada meridiano que atravessava, ganhava uma hora. Ele acertava seu
relógio segundo a hora local, enquanto o de Passepartout ficara o tempo todo
marcando a hora de Londres. Quando eles finalmente chegaram à sua cidade,
haviam dado a volta ao mundo e passado por 24 meridianos, o que quer dizer que
haviam ganhado 24 horas — e, achando que estavam no dia 21, na verdade tinham
chegado na noite do dia 20!
Fogg recebeu, portanto, as
20.000 libras da aposta, que meramente cobriram as despesas que tivera na
viagem, pois havia gastado mais do que 19.000 libras. Contudo, ele não se
importava com isso: não fizera a viagem para ganhar dinheiro, mas para provar
seu ponto de vista.
Dois dias depois, Fíleas e Aouda
casaram-se, com Passepartout servindo como padrinho da moça. No dia seguinte ao
casamento, o francês acordou com uma ideia na cabeça.
— Patrão — disse ele a Fogg —,
já pensou que poderíamos ter dado a volta ao mundo em 78 dias?
— Sim — respondeu-lhe o amo —,
se não cruzássemos a Índia. Mas se fizéssemos isso, eu não teria conhecido
Aouda, não é mesmo?
Fogg
tinha razão. Não ganhara nem perdera dinheiro naquela viagem, mas havia encontrado o amor.
Quem não daria a volta ao mundo por muito menos?
FIM
Sobre o autor:
Júlio Verne
nasceu na cidade de Nantes, na França, em 1828. Seu pai era advogado e esperava
que o filho seguisse sua profissão. Júlio, porém, desde criança amava os
livros, especialmente as narrações de viagens e aventuras. E acabou abandonando
os estudos de Direito para trabalhar em Paris escrevendo musicais para o teatro
e artigos sobre ciência em uma revista
Seu primeiro
livro foi Cinco semanas em um balão.
Custou a encontrar um editor que o publicasse, mas o livro fez um enorme sucesso,
tornando-o famoso. Seguiram-se Viagem ao
centro da Terra, Da Terra à Lua, Vinte mil léguas submarinas, Volta ao mundo em oitenta dias e muitos
outros. Verne morreu na cidade de Amiens, em 1905, e é considerado o pai da
ficção científica.
Em Volta ao mundo em oitenta dias, Júlio
Verne nos leva junto com os protagonistas numa viagem ao redor do mundo. É um
livro emocionante - com uma aventura atrás da outra e muitas surpresas –, no
qual o autor demonstra a paixão que teve por conhecer lugares diferentes e
exóticos e também pelos avanços da tecnologia.
Volta ao mundo em oitenta dias fala sobre o quê?
Sobre diferença entre culturas:
Os
protagonistas deste livro são um cavalheiro inglês, Fíleas Fogg, e seu criado
francês, Jean Passepartout. Quando eles saem em uma corrida pelo mundo,
encontram modos de vida muito diferentes dos que eles conheciam na Europa.
Volta ao mundo em oitenta dias não
retrata apenas lugares distantes no globo terrestre, mas mostra como nesses
locais as pessoas vivem de forma diferente e suas culturas podem parecer, para
alguns, muito estranhas.
Fogg e
Passepartout vivem aventuras no Egito, na Índia, na China e no Japão, além de
atravessar os Estados Unidos, da costa oeste à costa leste. E descobrem fatos
surpreendentes sobre cada local e cada povo.
Sobre ciência e tecnologia:
Júlio Verne
viveu no século XIX, num tempo em que a ciência avançava muito rapidamente e as
invenções estavam mudando a forma de ver o mundo. Um século antes, uma volta ao
mundo demoraria anos e teria de ser feita em navios a vela e sobre animais de montaria.
Na época de Fogg, já poderia ser feita em oitenta dias, pois existiam navios e
trens a vapor. Hoje, uma viagem dessas pode ser feita em oitenta horas, num
avião a jato!
Verne era um
homem curioso e interessado no desenvolvimento da ciência. Nas histórias que escrevia,
as invenções e descobertas sempre são importantes e ajudam os personagens a se
locomover, a agir. Em algumas obras, ele chegou a "inventar" coisas
que só seriam criadas ou realizadas décadas (até mesmo um século) depois, como submarino
nuclear e a viagem do homem à Lua. Por essa razão ele é considerado uma espécie
de profeta ou visionário.
Sobre honra, lealdade e amor:
O personagem Fíleas
Fogg é um típico nobre inglês: honrado, sua palavra vale mais que qualquer
coisa; corajoso, não hesita em arriscar vida para salvar seus companheiros de viagem.
É um autêntico cavalheiro britânico, calmo, fleumático — não demonstra seus
sentimentos — e contrasta com seu criado Passepartout, que é um francês
entusiasmado e apaixonado.
Por isso mesmo
o relacionamento entre Fogg e Passepartout é como o de Dom Quixote e Sancho
Pança: ambos formam o par ideal de aventureiros, com o tranquilo amo idealizando
a viagem e o criado leal apaixonadamente tomando conta dos detalhes práticos.
Acabam virando grandes amigos, mais do que patrão e empregado, por força das
aventuras arriscadas de sua viagem. E quando Fogg salva da morte a bela Aouda,
Passepartout torce para que ela e o cavalheiro fiquem juntos — justamente o que
acontece.
O livro traz
uma bela pitada de romance, pois Aouda também é capaz de sacrificar-se pelo
amor de seu corajoso salvador. Volta ao
mundo em oitenta dias é uma história emocionante, que nos faz conhecer
melhor nosso mundo e ver que, apesar das distâncias e das diferenças culturais,
qualidades como honra e lealdade são válidas em qualquer lugar do planeta.
Alguns endereços úteis para enriquecer o estudo da obra:
DRAW
MY BOOK - A volta ao mundo em 80 dias
Trabalho escolar feito por
Giovana Somera.
Trailer - A Volta ao Mundo em 80
dias -- Júlio Verne
Leitura com música: A volta ao
mundo em oitenta dias