quarta-feira, 20 de agosto de 2008

História bem narrada... que envolve e emociona. Deixe-se levar por essa prosa gostosa!

Os textos que você vai ler a seguir são parte do livro A menina que descobriu o Brasil, de Ilka Brunhilde Laurito. Quem conta a história é a protagonista, Fortunata, uma italianinha de 10 anos que, acompanhada do irmão menor, chega ao Brasil para reencontrar a mãe e o padrasto. A história se passa no início do século XX, quando muitos italianos imigravam para o Brasil e se estabeleciam em São Paulo à procura de trabalho e se concentravam em bairros como o Brás, o Bexiga e a Liberdade, onde ocorre nossa história.

O texto I
é o início do livro. No texto II, Vincenzo Laurito, o padrasto de Fortunata, conta à menina um pouco da história dele.


TEXTO I

Minha história começa numa aldeia italiana, muitos e muitos anos atrás... E continua na cidade brasileira de São Paulo, muitos e muitos anos atrás... Atrás, onde?... Lá, no tempo e no espaço da minha memória.

Eu tinha dez anos quando, com meu irmão Caetaninho, cheguei ao porto de Santos para reunir-me à metade brasileira de minha família: minha mãe, meu padrasto e os meus irmãozinhos nascidos no Brasil.

O mar, aquele grande mar que apaga os rastros de todos os barcos, apagara as imagens de minha infância:
Domenico Gallo, meu pai, vovô Leone, pai de meu pai, vovó Catarina, mãe de minha mãe, todos sepultados
num pequeno cemitério de aldeia. Vivos, mas sepultados na minha lembrança, ficavam, como um aceno de saudade, padre Cherubino, irmão de meu pai, e vovô Vincenzo, pai de minha mãe.

Eu estava em São Paulo, eu estava em 1900. Um mundo novo, um novo século, uma nova idade. O
futuro era agora. E a menina que tinha vindo “fazer a América” ia crescer, deitar ramos, flores e frutos,
como uma árvore da Saracena, desarraigada e replantada em terra alheia.
Vou contar...


TEXTO II

—É uma longa história. Uma triste história.
Vou contar... [diz o padrasto]
E contou. A voz mansa foi saindo pela janela, desceu a rua Tamandaré, seguiu pela rua Glicério, encontrou o caminho do mar e mergulhou nas ondas de um passado naufragado, que agora voltava à tona.
— Eu me casei, lá na Saracena, com uma moça muito boa e trabalhadeira. Éramos camponeses pobres e lavrávamos a terra de outros. Então resolvemos tentar a sorte aqui na América, onde já estava meu irmão mais velho. Juntamos nossas economias e partimos, minha mulher e mais um filhinho de poucos meses. Embarcamos no porto de Gênova, onde a passagem para os imigrantes era mais barata.
— De terceira classe? — perguntei, lembrando-me da minha viagem.
— A classe dos imigrantes. Naqueles primeiros tempos era pior do que agora que você e Caetano vieram. Muito mais gente embarcava para a América, era difícil alimentar direito todo mundo e manter as condições de limpeza do navio. E aconteceu a desgraça.
— Desgraça? — repeti ansiosa.
Vincenzo Laurito pegou um grande lenço do bolso, igual àquele com que enrolava moedas, passou-o pelo nariz. E continuou:
— Sim, desgraça. Uma epidemia de cólera. Doença muito grave, você conhece?
Enquanto eu lhe dizia que, de doença grave, só conhecia o sarampo que me atacara na Saracena, ele explicava:
— É um mal terrível e pode matar em pouco tempo. E foi isso o que aconteceu. As pessoas vomitavam, ficavam amarelas, enfraqueciam, acabavam morrendo. E, como não havia outro jeito, os corpos eram jogados ao mar. Foi assim que eu perdi minha mulher e meu filhinho.
Soltei um grito sincero de horror, enquanto ele levava novamente o lenço ao nariz.
— Uma desgraça, Fortunata. Uma desgraça. O navio chegou ao Rio de Janeiro, mas eu não pude desembarcar. Fiquei de quarentena na Ilha das Flores, depois o Serviço de Imigração me mandou de volta para a Itália. Cheguei à Calábria muito mais pobre do que quando tinha partido, porque já não tinha nem mais a família.
Ouvindo Vincenzo Laurito narrar a história de sua primeira e trágica aventura de imigração, eu contava notas e moedas, pensando que aquele dinheiro não tinha o peso do ouro, não. Tinha o peso da vida.
— E depois? — perguntei, disfarçando a emoção.
Meu padrasto assoou definitivamente o nariz, guardou o lenço no bolso como se, com ele, também guardasse o antigo sofrimento.
— Depois, eu voltei viúvo para Saracena. E aí as comadres da aldeia me falaram de sua mãe, que também era viúva e moça como eu. Daí nós nos casamos, e eu decidi tentar novamente a vida na América com ela. Só que, dessa vez, achei que era mais seguro deixar as crianças na Itália...
Parei de contar as notas. Fiquei olhando aquele homem que, debruçado sobre a mesa, conferia o total das somas que eu fizera. E entendi por que minha mãe dizia, enquanto preparávamos o almoço dos domingos, que ele não era nem um pouco enjoado para comer. Comia de tudo. Menos peixe.
Também entendi por que eu e Caetaninho tínhamos ficado para trás na Saracena. E porque entendi, olhei-o com uma familiaridade nova: ali estava ele, Vincenzo Laurito — o mesmo olhar bondoso, as mesmas mãos rudes e cálidas, os mesmos gestos mansos e até o mesmo nome do meu querido avô Vincenzo Ventimiglia. E descobri que, daí por diante, ia ser muito fácil chamar esse homem de pai.



Ilka BrunhildeLaurito A menina que descobriu o Brasil. São Paulo: FTD, 1999. p. 5-6; 33-5.

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