Pássaro pequeno vive pouco. Vive menos do que gente. Um dia na vida de um pássaro dá pra viver muita coisa. Pássaro é também muito esperto. Imagino que a esperteza é causada pelo medo de pedra, alçapão, visgo ou chuva.
O Peixe
Peixe pequeno vive pouco. Vive menos do que gente. Um dia na vida de um peixe dá pra viver muita coisa. Peixe é também muito esperto. Imagino que a esperteza é causada pelo medo de anzol, redes, seca ou peixe maior.
O Tempo
O pássaro da minha história eu o observo durante um dia. Também o peixe eu o observo nesse mesmo dia. Estamos juntos, mas com uma pequena diferença: o pássaro está no ar, o peixe na água e eu entre os dois - na terra.
O Início
Não foi possível observá-los mais de um dia. Estou com medo de faltar ao meu compromisso. Compromisso não pode ser adiado. Fico cheio de medo e triste. Isso porque os compromissos não são importantes no momento de cumpri-los. Eles parecem importantes no momento de aceitá-los. Observação: Quero deixar uma palavra que fica muito bem na minha história, nesse momento: Antecedência.
A Posse
A história é minha, mas o pássaro e o peixe não são meus. Até que é fácil possuí-los. Basta um aquário e uma gaiola. Mas não me importa tê-los na mão. Aprendo a me satisfazer pelos olhos, assim como pássaros e peixes que não têm as mãos.
A Paisagem
Minha história começa num momento de manhã. Estou com os olhos olhando sem ver nada. Parece que estou esquecido de mim. Não há cenário e é bom assim. É bom porque a minha história pode acontecer amanhã ou depois de amanhã, apenas no coração. Basta existir uma vida, qualquer espécie de vida, para que exista o impossível.
O Anúncio
O pássaro sai das poucas folhas de uma árvore comum. (Eu estou sentado debaixo). Ele dá um voo rasante e bica a superfície da água do rio. Existe um rio porque é necessário tê-lo para contar a minha história. É um rio que não passa de um riacho. Digo ao rio porque acho melhor e mais bonito para nele morar um peixe.
A Consequência
O pássaro volta para as folhas da árvore comum e se enfeita com elas. A árvore se enfeita com o pássaro e as folhas. O mundo se enfeita com a árvore e assim por diante. O pássaro espera assustado. O mundo está todo em expectativa. É uma luta de coração a coração. De repente, na beirada do rio surge um peixe entre colares circulares e brilhantes feitos de água e sol.
A Resposta
No exato momento, escuto um canto tão breve como deve ser o milagre. O peixe se cobre com as águas e desaparece. O colar fica sobre o rio, levando amor rio-abaixo, rio-acima.
O Silêncio
Foi tudo tão breve que nem gosto de escrever. Se escrever, fazê-lo com letra miúda e palavras escolhidas. Mesmo para pensar tal fato, meu pensamento se reduz. Desculpe se escrevo muito, mas quero reter junto com você tamanha realidade.
A Surpresa
Vocês percebem que minha história é de amor. Amor de peixe e de pássaro. Como é o seu início eu não sei. Acredito que nem os namorados sabem. A gente só sabe que gosta quando está gostando. O tempo aqui não tem importância.
O Mundo
O infinito é imenso. É nele que o pássaro mora. Ele é cheio de ar, sol, estrela solta, vento e nuvem. Passou no ar um bando de pássaros muito livres. O pássaro enamorado se junta aos outros, por pouco tempo. Ele volta para sua solidão tranqüila. Descansa. Adquire respiração normal e bica a água do rio novamente. Volta ao galho, se enfeita de folhas. Tudo acontece como anteriormente: o peixe, o colar, o canto, o milagre.
Novamente o Tempo
Deve ser meio dia. Estou sentado sobre minha sombra. Não existe vento. Tudo está parado no seu devido lugar: pássaro no ar, peixe na água e eu na terra.
A Certeza
É um amor impossível o de peixe e pássaro. Nunca podem estar juntos. O pássaro morre afogado na água. O peixe morre afogado no ar. Depois, peixe e pássaro não têm mãos para amar. Não sei nada sobre o coração de peixe nem de pássaro. Penso que devem ter muita esperança.
A Minha Solução
Quero construir uma gaiola conjugada com um aquário e deixá-los juntos. Minha idéia me entristece como os compromissos aceitos com antecedência.
A Liberdade
O ar é imenso. A água é imensa. Pode-se viajar no ar e na água por muito tempo. Mas o peixe e o pássaro estão ali, parados. A liberdade permite isso.
A Continuação
Por muitas vezes pelo resto da tarde o pássaro bica a água e se enfeita de folhas. Por muitas vezes o peixe mostra seu olhar entre colares de água e sol. O canto faz-se breve e exato.
O Fim
Escurece no céu e o escuro se reflete nas águas. Não vejo mais o peixe nem o pássaro. Volto no dia seguinte aos meus compromissos e penso: peixe e pássaro vivem pouco mas vivem muito num dia só.
Fonte: O Peixe e o Pássaro - Bartolomeu Campos Queirós - Editora Formato, 1991.
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