quarta-feira, 18 de março de 2009

E quando a gente pensa que já leu muita coisa bonita e que talvez não encontre tão cedo um texto de impressionar, de fazer bater mais forte o coração, eis que ele aparece assim por acaso na sua frente... e você fica em estado de graça. Pois é.



Pássaro pequeno vive pouco. Vive menos do que gente. Um dia na vida de um pássaro dá pra viver muita coisa. Pássaro é também muito esperto. Imagino que a esperteza é causada pelo medo de pedra, alçapão, visgo ou chuva.
Peixe pequeno vive pouco. Vive menos do que gente. Um dia na vida de um peixe dá pra viver muita coisa. Peixe é também muito esperto. Imagino que a esperteza é causada pelo medo de anzol, redes, seca ou peixe maior.
O Tempo
O pássaro da minha história eu o observo durante um dia. Também o peixe eu o observo nesse mesmo dia. Estamos juntos, mas com uma pequena diferença: o pássaro está no ar, o peixe na água e eu entre os dois - na terra.
O Início
Não foi possível observá-los mais de um dia. Estou com medo de faltar ao meu compromisso. Compromisso não pode ser adiado. Fico cheio de medo e triste. Isso porque os compromissos não são importantes no momento de cumpri-los. Eles parecem importantes no momento de aceitá-los. Observação: Quero deixar uma palavra que fica muito bem na minha história, nesse momento: Antecedência.
A Posse
A história é minha, mas o pássaro e o peixe não são meus. Até que é fácil possuí-los. Basta um aquário e uma gaiola. Mas não me importa tê-los na mão. Aprendo a me satisfazer pelos olhos, assim como pássaros e peixes que não têm as mãos.
A Paisagem
Minha história começa num momento de manhã. Estou com os olhos olhando sem ver nada. Parece que estou esquecido de mim. Não há cenário e é bom assim. É bom porque a minha história pode acontecer amanhã ou depois de amanhã, apenas no coração. Basta existir uma vida, qualquer espécie de vida, para que exista o impossível.
O Anúncio
O pássaro sai das poucas folhas de uma árvore comum. (Eu estou sentado debaixo). Ele dá um voo rasante e bica a superfície da água do rio. Existe um rio porque é necessário tê-lo para contar a minha história. É um rio que não passa de um riacho. Digo ao rio porque acho melhor e mais bonito para nele morar um peixe.
A Consequência
O pássaro volta para as folhas da árvore comum e se enfeita com elas. A árvore se enfeita com o pássaro e as folhas. O mundo se enfeita com a árvore e assim por diante. O pássaro espera assustado. O mundo está todo em expectativa. É uma luta de coração a coração. De repente, na beirada do rio surge um peixe entre colares circulares e brilhantes feitos de água e sol.
A Resposta
No exato momento, escuto um canto tão breve como deve ser o milagre. O peixe se cobre com as águas e desaparece. O colar fica sobre o rio, levando amor rio-abaixo, rio-acima.
O Silêncio
Foi tudo tão breve que nem gosto de escrever. Se escrever, fazê-lo com letra miúda e palavras escolhidas. Mesmo para pensar tal fato, meu pensamento se reduz. Desculpe se escrevo muito, mas quero reter junto com você tamanha realidade.
A Surpresa
Vocês percebem que minha história é de amor. Amor de peixe e de pássaro. Como é o seu início eu não sei. Acredito que nem os namorados sabem. A gente só sabe que gosta quando está gostando. O tempo aqui não tem importância.
O Mundo
O infinito é imenso. É nele que o pássaro mora. Ele é cheio de ar, sol, estrela solta, vento e nuvem. Passou no ar um bando de pássaros muito livres. O pássaro enamorado se junta aos outros, por pouco tempo. Ele volta para sua solidão tranqüila. Descansa. Adquire respiração normal e bica a água do rio novamente. Volta ao galho, se enfeita de folhas. Tudo acontece como anteriormente: o peixe, o colar, o canto, o milagre.
Novamente o Tempo
Deve ser meio dia. Estou sentado sobre minha sombra. Não existe vento. Tudo está parado no seu devido lugar: pássaro no ar, peixe na água e eu na terra.
A Certeza
É um amor impossível o de peixe e pássaro. Nunca podem estar juntos. O pássaro morre afogado na água. O peixe morre afogado no ar. Depois, peixe e pássaro não têm mãos para amar. Não sei nada sobre o coração de peixe nem de pássaro. Penso que devem ter muita esperança.
A Minha Solução
Quero construir uma gaiola conjugada com um aquário e deixá-los juntos. Minha idéia me entristece como os compromissos aceitos com antecedência.
A Liberdade
O ar é imenso. A água é imensa. Pode-se viajar no ar e na água por muito tempo. Mas o peixe e o pássaro estão ali, parados. A liberdade permite isso.
A Continuação
Por muitas vezes pelo resto da tarde o pássaro bica a água e se enfeita de folhas. Por muitas vezes o peixe mostra seu olhar entre colares de água e sol. O canto faz-se breve e exato.
O Fim
Escurece no céu e o escuro se reflete nas águas. Não vejo mais o peixe nem o pássaro. Volto no dia seguinte aos meus compromissos e penso: peixe e pássaro vivem pouco mas vivem muito num dia só.
Fonte: O Peixe e o Pássaro - Bartolomeu Campos Queirós - Editora Formato, 1991.

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