
Olhem o mapa do Brasil. Na ponta do nosso país, lá perto da Argentina e do Uruguai, vocês
vão encontrar o Rio Grande do Sul. Esse grande Estado não fazia parte do Brasil, quando os portugueses aqui chegaram; foi conquistado aos espanhóis depois de muita luta. Os chefes dessa campanha vitoriosa dividiram entre si aquele território, e assim ficaram com enormes propriedades. Elas se localizam principalmente na metade sul do Rio Grande, uma região que é conhecida como o pampa. É muito plana, só tem colinas suaves (conhecidas como coxilhas) e presta-se para a criação do gado. Assim surgiram as estâncias e nelas, o personagem típico do sul, o gaúcho. Seu trabalho principal era cuidar do gado, o que ele fazia montado a cavalo. Até fins do século dezenove, porém, boa parte dessa atividade estava entregue aos escravos negros. E foi por causa desses escravos que surgiu aquela que é a lenda mais
famosa do Rio Grande do Sul, a lenda do Negrinho do Pastoreio. Tão famosa é esta história que ela foi recontada por grandes escritores, como Simões Lopes Neto. E há também uma canção dedicada ao personagem, uma canção que todos os gaúchos gostam de cantar. Vamos então conhecer o Negrinho do Pastoreio.


Isso aconteceu há muito tempo, na época em que ainda existiam escravos. Nessa época vivia no Rio Grande do Sul um estancieiro, um homem muito rico — e muito malvado, tão rico quanto malvado. Todos sabem que os gaúchos costumam ser generosos, hospitaleiros, mas esse estancieiro não oferecia sua casa para ninguém. E também não ajudava os necessitados.

O estancieiro tinha muitos bois, e também muitos cavalos. Entre estes, o seu preferido era um baio, quer dizer, um animal cujo pêlo era castanho puxando para o amarelado. O baio era um bom corredor, e o estancieiro gostava de desafiar os seus vizinhos para corridas de cavalo. Quem montava o baio era um escravo do estancieiro, um negrinho pequeno e magro. Tão desamparado era o pobre que nem nome tinha, muito menos padrinho ou madrinha; por isso se dizia afilhado de Nossa Senhora. O negrinho sofria muito, inclusive porque o filho do estancieiro, menino malvado, volta e meia batia nele.

E foi, infelizmente, o que aconteceu. Quase na chegada, o baio estacou de repente, empinou-se nas patas traseiras. Quando o negrinho conseguiu controlá-lo, já era tarde: o adversário tinha ganho a corrida.
O estancieiro, furioso, atirou no chão o dinheiro que devia. E quando chegou em casa descarregou sua raiva no negrinho: mandou aplicar-lhe uma surra de relho. E deu-lhe um castigo. Como a corrida tinha sido de trinta quadras (quadra é uma antiga medida de comprimento), o rapaz teria de ficar trinta dias no campo, cuidando de cavalos (um pastoreio, no linguajar dos gaúchos). Eram trinta cavalos pretos e mais o baio.

O negrinho, que estava dormindo, não viu nada. Quando acordou, o dia já clareando, e viu que os cavalos tinham fugido, começou a chorar. O estancieiro, avisado pelo filho malvado do que tinha acontecido, mandou dar outra surra no escravo. Surrou-o até a noite e aí mandou que fosse, na escuridão, procurar os cavalos. O negrinho acendeu uma vela e, gemendo de dor, saiu pelo campo, subindo e descendo as coxilhas. Os pingos da vela iam caindo no chão e, coisa prodigiosa, a cada pingo que caía, nascia uma luz, que iluminava o pampa. E assim o negrinho pôde achar os cavalos. Juntou-os todos e, exausto, deitou no chão e adormeceu. Ao clarear do dia apareceu de novo o filho do estancieiro, que — mas era um demônio, mesmo, aquele guri! — soltou os cavalos.
Desta vez, o estancieiro enlouqueceu de raiva. Mandou dar de novo uma surra no negrinho, mas uma surra de relho muito pior que de outras vezes. O negrinho ficou todo lanhado, quase em carne viva, o sangue escorrendo das feridas. E o perverso estancieiro mandou que o colocassem num formigueiro, para que as formigas o devorassem. E ali o deixou. Naquela noite e nas noites seguintes, teve o mesmo sonho: sonhou que tinha ficado muito rico, que tinha mil escravos, mil cavalos baios, mil filhos, um milhão de moedas de ouro.

Três dias depois, foi até o lugar onde estava o formigueiro, para ver o que tinha sobrado do pequeno escravo. Quando lá chegou, arregalou os olhos, cheio de espanto.
O negrinho estava ali, de pé, a pele intata — nenhuma ferida, nada. Junto a ele, o baio e os trinta cavalos pretos. E, vigiando-os, Nossa Senhora. Risonho, o negrinho pulou no baio e saiu a galope, conduzindo a tropa de cavalos...
O negrinho estava ali, de pé, a pele intata — nenhuma ferida, nada. Junto a ele, o baio e os trinta cavalos pretos. E, vigiando-os, Nossa Senhora. Risonho, o negrinho pulou no baio e saiu a galope, conduzindo a tropa de cavalos...

Para a gente da região o pequeno escravo tinha morrido no formigueiro. Mas então os gaúchos do campo começaram a falar de uma tropa de cavalos que passava à noite, conduzida por um negrinho montando um baio. E daí nasceu uma tradição, no Rio Grande do Sul: quem perdeu alguma coisa no campo deve acender uma vela para o Negrinho do Pastoreio. É o que diz a canção: "Negrinho do Pastoreio / acendo esta vela pra ti / e peço que me devolvas / a querência que eu perdi". Querência, no linguajar gaúcho, é o lar, o lugar a que estamos ligados por laços de afeição. O Negrinho do Pastoreio mora para sempre na grande e acolhedora querência que é a bela tradição do Rio Grande do Sul.
“História recontada por Moacyr Scliar, com base no folclore gaúcho e na narrativa de Simões Lopes Neto”.
Moacyr Scliar Nascido em Porto Alegre, em 1937, Moacyr Scliar é autor de 55 livros, em vários gêneros: conto, romance, crônica, ensaio. Suas obras foram publicadas em mais de vinte países, com grande repercussão de crítica e de público. Tem trabalhos adaptados para o cinema, tevê, teatro e rádio. A literatura juvenil é uma das áreas preferidas do autor. Como ele mesmo diz, "escrevendo para o público jovem, reencontro o jovem leitor que fui, e que buscava nos livros não apenas respostas para suas dúvidas e inquietudes, como sobretudo aquela emoção que só a literatura pode proporcionar".
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