sábado, 3 de abril de 2010

Você tem medo de assombração? Acredita em seres sobrenaturais? A história que vamos ler fala de um estranho ser que vive nas matas. Como será ele?

Caipora, o pai-do-mato

Toda manhã, bem cedinho, dois compadres iam juntos para a mata cortar lenha.

A mata era uma beleza. Clara-escura, com tudo quanto é tipo de planta. E mais o canto dos pássaros e um mundaréu de borboletas amarelas!

Com seus machados os lenhadores iam cortando a madeira. Compadre Tonho procurava cortar sempre os galhos mais baixos, pra não ferir muito as árvores. E vivia chamando a atenção do Compadre Chico, que cortava troncos, quebrava galhos sem necessidade e às vezes até matava um bicho, só pra treinar a pontaria.

Um dia, o Compadre Chico não foi. Tonho entrou sozinho na mata, e parecia que estava tudo diferente. Uns barulhos esquisitos, uns sussurros, estalos de folhas secas, o riacho no meio das pedras mais barulhento do que nunca... Aqui e ali, a corrida de um gato-do-mato ou o bater das asas de um pássaro. Um vento frio de doer, e um silêncio estranho entre um som e outro.

Compadre Tonho apertou o cabo do machado, as juntas doendo de frio. Forçou a vista: era difícil enxergar na escuridão cinzenta da mata.

De repente, apertou mais os olhos: não era possível! Devia estar vendo coisas... Mas não: lá adiante, aquele vulto escuro, aquela visagem... Esfregou os olhos, olhou de novo: a visagem continuava lá. Atrás dela, parecia que vinham todos os bichos do mundo, grandes e pequenos, de penas e de pelos, comedores de carne e de ervas. O coração do lenhador disparou. Era o Caipora, o pai-do-mato!

O lenhador, paralisado de medo, viu a figura vir vindo, chegando mais perto, bem devagar. Era enorme, verde da cabeça aos pés, parecendo uma planta semovente. Os membros grossos, grandes, o corpo coberto de pelos grossos como cerdas. Os braços, compridos, quase tocavam o chão. Focinho de cachorro-do-mato, orelhas em pé, curtas, de pontas viradas pra fora.

Imóvel, sem fala, o lenhador se lembrava das histórias sobre o Caipora: que dá risada como qualquer pessoa. Que fuma cigarro de palha e pito de barro. Que persegue quem estraga as plantas e mata bichos sem necessidade... Que é castanho, de pelos se arrastando no chão – mas este era verde, bem verde...

O coisa parou. Tinha os pés virados: dedos pra trás, calcanhares pra frente. O homem tremeu. Então, de repente, o Caipora perguntou, com voz rouca:

– Tem fumo aí, siô?

– E...e...eu? fumo?

O lenhador, estatelado, olhava para figura à sua frente.

– Tem fumo? – repetiu o bicho num ronco surdo, estendendo a mão peluda.

O lenhador parou de tremer. Mesmo assim, não conseguia falar. Acenou que sim, abriu a capanga, retirou um naco de fumo e estendeu.

Mais que depressa o Caipora agarrou o fumo e saiu trotando, com a bicharada atrás. Compadre Tonho saltou de lado para dar passagem e ficou olhando. O rastro do Caipora se imprimia ao contrário no chão: as pegadas viradas pra cá , enquanto o dono delas corria pra lá... Atrás, a bicharada: cachorros-do-mato, pacas, caititus, antas, capivaras, jaburus... No ar, acima da cabeça dele, a suave revoada das rolas.

O lenhador enxugou o suor da testa:

Ufa! Vom’trabalhar! resmungou. arre, que não ganhei pro susto!

Nesse dia ele voltou tarde, com o carrinho pesado de lenha boa, madeira de lei, que tinha encontrado não sabia como. A alma, essa estava leve. Uma estranha alegria tomou conta do coração dele. Pôs-se a cantar, um pouco desafinado pela falta de hábito...

No outro dia, acendeu o forno para fabricar o carvão que ia vender na cidade. Os troncos eram tão lisos e bonitos, tão agradáveis à vista que seu coração se aqueceu de novo. A lenha crepitava, nunca acabava de queimar. Quando compadre Tonho apagou com água as brasas vermelhas, o carvão continuou cintilando seu negro brilho. Ele ficou sabendo então que, nesse dia, a mão de um deus carinhoso o havia ajudado.

Na vila, os carvões brilhantes do Compadre Tonho causaram alvoroço.

Isso é de muito valor, moço!

Quer comprar?

Eu não! Sei lá se foram roubados!

– Que é isso? Eu sou lenhador! Fazer carvão é o meu ofício! Então eu lá preciso roubar carvão?

Onde achou isso?

Pra falar a verdade, não achei. Queimei a lenha, e sobrou esse carvão no meio.

E o lenhador contou a viagem daquele dia, o encontro com o bicho dos pés virados.

Ah! disse o outro. – É o pai-do-mato!

Acho que era. Mas eu lá tenho alguma coisa com o Caipora? Diz que o bicho enfeitiça e persegue quem anda no mato...

Nem sempre. Você deu fumo pro pitinho dele, ganhou uma fortuna. Sorte sua!

Pelo sim, pelo não, Compadre Tonho não foi mais à floresta. Compadre Chico, seu companheiro, ouviu falar de sua sorte. Invejoso, foi atrás dele, pra arrancar o segredo de sua riqueza. Mas só ouviu uns grunhidos e umas desculpas:

Sei não... Penso que a minha sorte foi por causa do encontro, mas não tenho certeza...

E ficou nisso.

Um belo dia, Compadre Chico andava pela mata quando escutou um tropel. E viu: passou correndo uma criatura esquisita, de pés virados. Atrás dela um mundaréu de bichos fazendo um barulhão. O caipora!

O homem correu atrás, oferecido, gritando, até que o pai-do-mato parou. O lenhador tremia de cobiça. E foi logo perguntando:

Pode me dar daquele carvão? Eu tenho fumo aqui, no embornal. Tenho muito!

A cara do bicho escureceu. Dos seus olhos saíram chispas verdes de ódio. Em volta, tudo virou um silêncio só . Nem uma folhinha se mexia. Com um ronco surdo, o bicho avançou sobre o homem e o agarrou...

E daquele dia em diante, surgiu uma nova assombração nas matas: um homem que fica vagando pra baixo e pra cima, que nem alma penada, virado pelo avesso...

Sonia Junqueira. In contos de assombração. São Paulo, Ática, 1985. P. 18-24.

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