sexta-feira, 27 de março de 2009



Autora:Marcia Kupstas
Disciplina:Literatura
Nível:Ensino fundamental
Ano:2002
Páginas:56

Informações complementares
Estilo literário:Conto
Temas abordados:Competição
Temas transversais:Consumo, orientação sexual, pluralidade cultural, trabalho, ética

A coleção Deu no jornal é o resultado de um desafio lançado a seis autores: escrever uma ficção a partir de uma notícia publicada em algum jornal. Márcia Kupstas, Walcyr Carrasco, Luiz Antonio Aguiar, Júlio Emílio Braz, Fernando Bonassi e Pedro Bandeira aceitaram a tarefa e escolheram temas e construíram histórias bem diferentes, mas todas com alguma ligação com a vida real.


Sangue veloz é uma dessas histórias: texto bem-humorado, que trata de dois irmãos muito especiais. Diferentes até nos nomes, Zeno e Gelásio, rivais desde os tempos da chupeta... E carregaram sua rivalidade pela vida afora, disputando o primeiro lugar na corrida, na amizade e até no amor de uma colega de escola!

1. Chupeta turbinada
Zeno era o mais velho. Nasceu um ano e sete meses antes de Gelásio. A primeira corrida dos dois aconteceu sem plateia ou torcida: provavelmente na sala, quando Zeno atropelou Gelásio e o deixou rodando feito louco no seu andador de bebê. Isso, enquanto o menino mais velho avançava, com suas perninhas gorduchas. Era uma disputa feroz, por um troféu bem especial: o carrinho de brinquedo, largado sobre o sofá. Foi a primeira corrida, a primeira vitória e o primeiro acidente: Gelásio manteve a pole-position durante a maior parte da sala, digo, da pista, e depois de três voltas escapando da mesa de centro, das almofadas no canto e do cachorro que latia furiosamente, acabou batendo o andador no pé da cristaleira e foi ao chão, enquanto o mano mais velho agarrava o brinquedo e erguia os braços, autêntico campeão, olhos fuzilando a vitória conquistada por seus pés velozes... Choradeira, claro. O cachorro, Pluto, uivou bastante. Um som que parecia berro da multidão, coisa semelhante à música para os ouvidos do vencedor. E se a chupeta acalmou o perdedor, também lhe serviu de consolo: era a certeza de que aquela vitória não ficaria assim. Era apenas a primeira disputa. Uma batalha perdida, nunca a guerra.
2. O prazer de colecionar

Os meninos tinham a quem puxar, no que dizia respeito a competir. O pai deles era famoso no bairro pelas coleções exóticas. Anacleto Bulhões, ainda solteiro, especializou-se em colecionar chaveiros de empresas. Aqueles chaveirinhos de brinde, que a maioria despreza nas gavetas ou perde sem reparar. Anacleto levava a coleção a sério: se tinha duplicata, trocava com vizinhos. Era capaz de telefonar para as empresas que brindavam os clientes com chaveiros incrementados, em final de ano, e pedir doações. Espalhara nas paredes quadros de veludo, para pendurar seus troféus. Reuniu em três anos um número imenso de chaveiros, algo em torno de 5 000 peças. Consultava livros de recordes, para saber se havia no mundo outro aficionado igual a ele. Mostrava a todos os amigos e visitantes a coleção... que acabou na semana seguinte ao casamento. Maria Pia reclamou: tanto veludo seria a alegria das traças. Pegava melhor, nas paredes de um lar recém- montado, espalhar quadros de paisagem ou fotos de família. A coleção acabou em muitos sacos de lixo. Foi logo seguida pela incrível coleção de latas de cerveja. Tinham de ser latas fechadas, contendo o líquido precioso. E Anacleto descobriu um Clube de Cervejeiros, colecionadores tão dedicados quanto ele, que comparavam as preciosidades e disputavam as relíquias: lata comemorativa do quatricentenário da cidade de Potokowski ou cerveja com mel da Transpomerânia do Sul. Foi paixão que durou alguns anos, até nova implicância da esposa e nova mudança de coleção. Quando o filho caçula nasceu, Anacleto descobriu um vizinho que colecionava coisa menos volumosa: chicletes. Movido pelo desejo de concorrência, Anacleto resolveu que teria coleção maior e mais interessante. Nas gavetas de dois armários gigantescos, possuía já 3 800 exemplares de gomas de mascar. Exótico, esquisito? Talvez... nada tão esquisito quanto o motivo de seus filhos se chamarem Zeno e Gelásio.
3. Zeno e Gelásio
Se o marido tinha tamanho zelo com suas coleções, Maria Pia bem que merecia o nome. Beata e também colecionadora empolgada, Maria Pia preferia as histórias religiosas. Adorava santinhos, biografias de santos, imagens antigas. Guardava os santinhos recebidos desde a missa dos 7 anos. Tinha em casa uma imensa variedade de missais e papéis com as letras das músicas cantadas nas igrejas. Além da mais completa coleção de hagiografias, ou seja, histórias da vida dos santos.
Por isso, mal engravidou, Maria Pia tratou de descobrir o nome ideal para cada filho. Conferiu calendários e leu tudo a respeito das prováveis datas de nascimento dos “frutos de seu ventre”. O garoto mais velho nasceu em 12 de abril e como era dia de são Zeno, assim foi batizado, O tal Zeno tinha sido bispo da cidade italiana de Verona, era um homem que falava bem, defendia os viajantes e os pobres. A mãe zelosa esperava que algumas dessas qualidades pudessem contagiar o filho, se fosse homônimo de santo tão expressivo. Já o caçula era do dia 21 de novembro e foi batizado com o nome de são Gelásio. Gelásio tinha sido papa! E também muito caridoso. Morreu pobre, depois de doar suas riquezas aos desafortunados. Não que Maria Pia esperasse que o filho morresse na miséria, mas bem que gostaria que a generosidade do santo contagiasse o menino. Para a mãe, pouco importava se os nomes eram estranhos aos ouvidos modernos. O essencial era a homenagem, a certeza de que os filhos mereceriam a proteção divina, mesmo que esses santos tivessem pouca adoração: eram santos, protegeriam seus filhos. Os meninos porém não revelaram os talentos esperados por serem homônimos de santos. Também não se importavam com o exotismo dos nomes ou as disputas paterna e materna. Desde cedo, descobriram para si mesmos um outro destino. Era aquela implicância especial, uma disputa íntima e ferrenha, um desejo mais forte do que eles: a vitória pela velocidade. E se a guerra já começou com fralda e chupeta, a coisa foi piorando quando os dois entraram na escola.

4. Empurrão e deslizamento

Na escola infantil Macaquinho Feliz, Zeno cursava o Maternal II e Gelásio, o Maternal 1. Era uma escolinha de bairro, em que ficavam crianças de O a 7 anos. Poucas educadoras cuidavam das duzentas crianças. Foi um menino mais velho quem descobriu a maravilha que o terreno dos fundos proporcionava: nos dias de chuva, o terreno inclinado ficava perigosamente escorregadio. Bastava pegar uma das tábuas largadas pelo quintal, restos de uma reforma inacabada, ajeitar alguém mais parrudo para ser o motor de arranque, subir sobre a tábua e deslizar! A inclinação do terreno permitia alta velocidade e, dependendo da habilidade do motorista, era possível chegar até o muro, no limite da escola. — Uma corrida! — falou Gelásio, quando um colega explicou seu plano para os meninos, durante o recreio. — As “tias” não vão deixar... — concluiu Betinho, menino sardento e com fama de medroso. — E daí? A gente faz escondido — disse Gelásio, sorrindo diante da expectativa de desafiar o irmão mais velho. Mal Zeno ficou sabendo que o mano caçula ia disputar uma corrida no terreno, topou na hora. Outros dois meninos também se aventuraram a enfrentar as professoras. E, no recreio seguinte, os quatro competidores se alinharam no alto do morro. Chovera bastante durante a madrugada, e o barro estava espesso e grudento, como era de se esperar de barro. Os “motores” eram os meninos mais gordos e altos da escolinha. Um grupo de trinta alunos espalhava-se em torno dos quatro corredores: o grid de largada estava composto por dois meninos do Maternal II e os irmãos-velocidade, Zeno e Gelásio. Para os dois garotos do Maternal II, descer a rampa era só uma brincadeira. Já os irmãos Bulhões levavam a corrida a sério. Cada um deles havia inspecionado o barro, o possível trajeto, e tinha passado suas ordens para os assessores. No momento em que a menina mais bonita da escola, Soninha, gritou o “já” que marcava o início da corrida, começou a batalha! Os alunos do Maternal II não deram para o começo. O primeiro embicou de lado e foi rolando pelo barro, acabou enlameado como um croquete frito em óleo velho. O outro garoto era meio gordo e sua tábua afundou num lamaçal mais denso. Os “Bulhões-brothers” porém enfrentaram as dificuldades com ousadia. Além do impulso inicial dado pelos empurradores, cada um deles enfiava o pé na lama, para conseguir impulso, gritava palavrões um contra o outro, forçava o corpo para a frente, controlava as tábuas com vontade e, quando Gelásio descobriu uma brecha deixada pelo mano, não teve dúvidas: jogou a tábua sobre o “automóvel” de Zeno, botando-o fora de rota. — Cuidadoooooooooooooooooo! — gritou Soninha, tapando os olhos, com medo, ao ver que Zeno deslizava perigsamente fora da reta, saindo pela lateral, voando para fora do terreno e batendo de frente na única árvore que enfeitava o pátio da escola. Enquanto os torcedores de Zeno erguiam o pobre ferido que havia se esborrachado de frente na árvore, Gelásio recolhia a glória dos aplausos dos outros colegas, ao chegar inteiro e satisfeito até o muro. Ele poderia não se lembrar do dia da primeira disputa, entre andador e chupeta, mas bem que Gelásio sentiu um gosto de vitória tardia, daquelas que vingam a alma de coisas antigas. Era a vez de Zeno perceber que seu dia também haveria de chegar, para vingar a derrota e a humilhação.

5. Tempos de paz

Nos anos seguintes os irmãos demonstraram curiosa camaradagem. Iam e voltavam sempre juntos no trajeto casa-escola, ajudavam-se nas lições escolares, gostavam dos mesmos programas na TV e tinham até os mesmos amigos, vizinhos do bairro. No dia-a-dia a vida deles era até bem tranquila. A luta mesmo acontecia na hora em que surgia uma competição que envolvesse velocidade. Aí sim, era possível dizer que se esqueciam de que eram irmãos! Bastava alguém gritar “vamos ver quem chega primeiro até ali?” e pronto! Zeno não tinha vergonha de empurrar os outros e disparar na corrida, ou mesmo Gelásio, era capaz de colocar o pé na frente de quem ameaçasse sua liderança. E ai dele, se o coitado fosse o próprio irmão! Azar dos perdedores. Importante era vencer. — Não entendo como o Zezê ainda não quebrou a cara do Gelá — falou um dia o amigo deles, Betão. — Só não fez isso porque não teve uma corrida que prestasse — completou outro amigo, Renato. Os colegas concordavam: era apenas uma questão de tempo. Ou de acontecer a Corrida Ideal, a Grande Disputa, para que a frágil aliança dos “Bulhões-brothers” se rompesse de vez. E isso foi acontecer quando os meninos estavam começando o Terceiro Ciclo numa escola nova e ambos conheciam novas matérias, novos colegas, nova menina... a novidade do amor. Apesar de mais novo, foi Gelásio quem se interessou primeiro pela loirinha Dinorah. A menina vinha de uma cidade do interior e não tinha amigos na capital. Cabelos muito claros e compridos, quando sorria ficava com a marca de uma linda covinha no rosto. O nariz era tão pequeno e delicado que Gelásio imaginou que não deveria existir no mundo alguém que tivesse nariz mais bonito. Ela estava na turma C, enquanto Gelásio ficava na turma A e seu irmão, na B. Apesar de nunca ver a garota em aula, o menino podia segui-la no pátio na hora do intervalo. E era o que sempre fazia. E logo Gelásio descobriu que havia outro menino a seguir a figura loira, quando passeava entre as colegas, no pátio: o mesmo olhar comprido e pidão, que Gelásio sempre mantinha ao fitar a sua querida, refletia-se nos olhos de seu irmão Zeno.

6. Tempos de guerra

— Nem inventa, Zeno, nem quero saber! Eu fui o primeiro a gostar da Dinorah — falou Gelásio, num certo dia em que o mano discutia sobre quem tinha o direito de paquerar a loirinha. — Duvido — falou Zeno. — Ela está a fim de mim desde o primeiro dia de aula. Eu que me interessei por ela. — Interessou, interessou.., e daí? Todo mundo na escola podia se interessar por ela. Quero ver é ela, se gosta de você.
— E de você? Ela gosta de você, por acaso? — De você é que não é. Eu pedi pra Glorinha conversar com a Dinorah... — É? — Zeno apavorou-se com a idéia de que Dinorah já tivesse escolhido o irmão. — E o que ela falou? — Ela disse que não sabe se gosta mesmo de mim. Ou se gosta de outro menino. — Está vendo? — Zeno respirou, aliviado. — Ela gosta é de mim. — De mim! — De mim! DE MIIIIIIIIIIIIIIIIIIM! Pronto! Para decidir o impasse, só havia um jeito de eles acertarem as diferenas: organizarem uma corrida. Pra valer. De bicicleta. — Bicicleta en-ve-ne-na-da — falou Zeno, saboreando as sílabas enquanto falava. — Bicicleta envenenada e... — completou Gelásio, falando bem devagar — ... e sem freio. — Numa descida — continuou o irmão. — Naquela descida atrás da fábrica fechada. — E tem de ter um prêmio — concluiu Zeno. — O melhor prêmio do mundo! Restava ver se o “melhor prêmio do mundo” concordaria em participar da disputa. Os irmãos consultaram Dinorah por suas amigas e ela, meio assustada a princípio, acabou topando: Dinorah daria um beijo, sim, no vencedor da prova.
7. Um perigo iminente

A data da disputa foi marcada: dia 12 de junho, Dia dos Namorados. Tanto Zeno como Gelásio concordaram com a data porque ambos imaginavam que o vencedor conquistaria mais do que a vitória, quem sabe o coração da menina. E um dia assim especial adoçaria ainda mais o gosto da vitória. Além do perigo da disputa em si mesma, o trajeto escolhido pelos irmãos era outro ingrediente a transformar a prova em uma autêntica batalha: a ladeira atrás da fábrica abandonada. Não há moleque no mundo que desconheça os lugares mais interessantes — e mais perigosos — do bairro. E nem Zeno ou Gelásio abririam exceção a essa bela regra. A tal ladeira, a tal fábrica abandonada, era tão atraente como lâmpada acesa para pirilampo. Era um lugar um tanto deserto, a ladeira ficava a um quarteirão da avenida e pouquíssimos carros se aventurariam pelo asfalto irregular; a fábrica não tinha vigia e a ladeira era realmente acidentada. Tudo isso marcava a disputa como momento extraordinário, um duelo de gigantes, um desafio que marcava o perigo e a temeridade dos concorrentes. Os “Bulhões-brothers” poderiam ser novos na escola, mas a disputa os transformou em seres especiais, pessoas que, mesmo desconhecidas, mal chegavam e já marcavam seu território. De boca em boca, começou a correr a novidade da corrida. O motivo. A rivalidade. As qualidades de cada concorrente. A intensidade com que cada um deles se jogava na disputa. Assim são feitas as lendas: no boca a boca. E logo, em toda a escola, os alunos se puseram a comentar o grande evento do semestre: a corrida. A corrida de bicicleta pela ladeira atrás da fábrica fechada. E, ainda por cima, o que os dois competidores disputavam era um beijo! Era ou não era uma batalha onde valia a pena arriscar perna quebrada ou nariz esfolado?

8. A torcida
A escola inteira ficou sabendo da disputa e se dividiu em dois grupos: os torcedores de Zeno e os aliados de Gelásio. Os alunos comentavam a respeito dos desafiantes como se falassem sobre atletas profissionais: — O Zeno vence porque é mais alto — falava um menino do Quarto Ciclo. — E desde quando precisa ser alto para andar de bicicleta? — zombava um dos aliados de Gelásio. — O Gelá tem pernas fortes, vence todo mundo na corrida... — Mas a bicicleta do Zeno é melhor — respondia um dos fãs do garoto. — O Gelá está incrementando a magrela dele, vai ser uma loucura! — dizia outro colega. Cada irmão arrumou seu boxe de mecânica e preparava a bicicleta com a ajuda de um verdadeiro time de auxiliares. Zeno guardou a magrela na casa do Julinho e todo dia, depois das aulas, trancava-se com meia dúzia de moleques para lubrificar a bicicleta, montar e desmontar os pneus, trocar pedais ou calibrar o selim. Gelásio, por sua vez, armou o quartel-general na casa do Ataliba, que, além de colega da escola, era primo de Dinorah. O tal Ataliba ajudava a ajeitar a magrela e também conferia seu tempo, quando Gelásio praticava loucamente pelas ruas inclinadas do bairro. Quando conseguia, o menino também perguntava sobre a loirinha. — A Dinorah disse que gosta dos dois — falava Ataliba, sem graça. — Para ela, tanto faz dar o beijo em um ou no outro. — Quando eu vencer, ela muda de idéia — respondia Gelá, certo de que não haveria garota no mundo que não se deixasse seduzir por um vencedor.
9. Dinorah

E como se sentia Dinorah, motivo da disputa, pomo da discórdia dos irmãos? Ela podia desconhecer que a expressão “pomo da discórdia” surgiu na mitologia grega, quando um deus invejoso jogou na mesa uma fruta dourada, com um bilhetes “Para a mais bela”. Bom, como tanto a deusa Minerva, a deusa Juno e a deusa Vênus achavam-se as mais belas, criou-se no Olimpo um enorme bafafá. Elas tiveram de buscar um juiz para resolver a briga e aí a história é bem comprida, resta dizer que dessa competição resultou até uma guerra.
Se Dinorah desconhecia mitologia grega e a origem da Guerra de Tróia, do que ela sabia mesmo era que se armava uma pequena guerra familiar, com os irmãos partindo para uma competição tão maluca. Ela morria de medo de ser o motivo de um deles se machucar feio... Até porque a loirinha não gostava de nenhum deles, não. Para dizer a verdade, seu coração batia mais forte era pelo Rogério, um garoto calado do Quarto Ciclo, que não andava de bicicleta, nem disputava corrida ou se interessava por esportes. Era um menino meio gorducho que ficava enterrado nos livros e tinha olhos grandes e sonhadores. — Como é que me meti nessa? — pensava a menina, confusa. — Tem de ter um jeito de azarar essa competição.
10. Lar, nem tão doce lar
Já falamos que a disputa fraterna se dava no campo da velocidade. No mais, em casa, tanto Gelásio como Zeno até se gostavam. Dividiam programas, brincadeiras, amizades. Mas depois da chegada de Dinorah e da vontade de disputar o intetesse da menina, o clima azedou de vez. Se Zeno resolvia jogar videogame, era Gelásío quem desprezava o jogo e optava por ver TV. Só para desligar o game e azarar a brincadeira do mais velho. Se Gelásio escolhia pudim de sobremesa, o irmão inventava de não poder com coisas geladas. E só restava, à pobre empregada, inventar bolo ou chocolate quente como sobremesa. Se um ligava interurbano para a avó, era o outro que achava alguma tarefa para se afastar da ligação. Ou se recebiam amigos em casa, tanto faziam que qualquer colega teria uma difícil opção: ou só era amigo de Zeno ou só amigo de Gelásio. De ambos, nunca. — Sei lá o que está acontecendo com esses meninos — falou o pai, um dia. Dona Maria Pia deu de ombros: — Os santos que os protejam... Mal sabia a mulher como era importante a proteção dos santos, num momnto como aquele!

11. Zenistas e gelasistas

Quando o mês de junho começou, a escola estava dividida de vez. Todos os alunos, mesmo os mais velhos, já conheciam Zeno e Gelásio, nem que fosse de nome, e comentavam sobre a disputa. É verdade que os professores desconheciam o motivo de tanto cochicho e fofoca, e, se desconfiassem de algo, jamais imaginariam tratar-se de uma competição de tal peso. Porque com a participação da escola toda, a Corrida Ideal estava cada vez mais com cara de batalha e de segredo: o trajeto fora definido. Os limites de largada e chegada foram acertados. Grupos de admiradores de Zeno e de Gelásio haviam conferido dezenas de vezes as regras. E todos eles agiam com o zelo de verdadeiros fanáticos, escondendo fatos dos rivais e analisando as chances de vitória de seus “heróis”. Cada vez mais, esses grupos rivais investiam em “armas”: os zenistas preferiam a artilharia dos canudos assoprados nas canetas vazias, mirando partes descobertas do corpo dos adversários. Já os gelasistas optavam pela agilidade do elástico, volta e meia acertado com precisão no traseiro de algum inimigo desatento. Não era apenas a disputa dos irmãos na corrida de magrelas, o desejo de cada um deles de receber o beijo de Dinorah. A coisa crescia, os ânimos de toda a escola se alteravam. Aquilo começou a ganhar contornos de guerra: era uma batalha estranha e feroz, a que se armava entre os grupos rivais.
12. Chegam reforços

— Eu não agüento mais essa história, você tem de me ajudar, Ataliba — Dinorah reclamava com o primo. Faltavam dois dias para a competição e na saída da escola havia acontecido a primeira escaramuça entre gelasistas e zenistas: briga feia, que terminou com cinco arranhões, quatro rostos vermelhos de tapa, oito traseiros feridos por elásticos certeiros e mais sete alfinetadas de canudinho em braços e pernas. Um massacre! — Desista do beijo — aconselhou o primo da menina. — Fala que você não vai dar beijo em nenhum, e eles param.
— Será? Do jeito que a coisa está, com beijo ou sem beijo eles vão correr do mesmo jeito — desconfiou a garota. — É, isso é verdade... eles estão que parecem malucos. Um nem olha para o outro! — Você não viu que loucura? Tiraram os freios das magrelas, a avenida termina no muro da fábrica, um deles ainda arrebenta o nariz na parede! — Todo mundo da escola vai assistir... — explicou o primo. — Verdade, Ataliba? — suspirou a loirinha. — Tem gente que disse que vai armado — completou Ataliba. — Você tem de me ajudar — falou Dinorah. — A gente precisa fazer alguma coisa. Tem de parar com essa bobagem! — E se você... — Ataliba cochichou na orelha da prima. Pelo sorriso de Dinorah, deu para ver que ela gostou, sim, da idéia do primo.
13. O grande dia

Parecia filme de bangue-bangue. O sol se pondo, lá pelas cinco e pouco da tarde em dia de inverno, esticava a sombra dos combatentes do duelo. Montados em suas bicicletas, pareciam cavaleiros que logo, logo sacariam a arma e começariam a atirar. Mal bateu o sinal da saída, os alunos correram pelos portões e espalharam-se agora pela rua — claro que zenistas de um lado e gelasistas do outro. Uma multidão barulhenta e excitada: os elásticos e bodoques eram exibidos, as réguas e mochilas eram levantadas como armas de um exército pronto a se atracar. Dois gelasistas e dois zenistas conferiam a trajetória da competição. A ladeira era realmente íngreme, uma loucura imaginar as bicicletas despencando dali, sem freios, contra o enorme e cinzento muro da fábrica. Dinorah estava na largada, sobre uma pilha de mochilas erguida especialmente como lugar de honra. Ela deveria jogar um lenço no chão, marcando o início da disputa. Quando o lenço tocasse o solo, os meninos partiriam na corrida desesperada. Foi preciso que Dinorah insistisse muito para que aceitassem pelo menos uma exceção protetora: cada um dos manos usaria um capacete. — É por você, Dinorah! — falou Zeno, sendo delirantemente aplaudido pelos zenistas. — Seu beijo é meu! — gritou Gelásio, acompanhado pelo apoio dos gelasistas de “já ganhou!”. Uma súbita rajada de vento ergueu poeira do solo. O trânsito ficava distante da ladeira, os poucos motoristas que passavam pelo local não se aproximavam a ponto de atrapalhar a competição. Últimos preparativos. Uma colega apertou a mão gelada de Dinorah, que, pálida sobre a pilha de mochilas, parecia uma estátua de deusa antiga. Os meninos cumprimentaram-se e montaram nas bicicletas. Gelasistas e zenistas calaram-se: estranho momento de silêncio. E por causa de tamanho silêncio e expectativa, foi fácil identificar o som do motor de um carro, que se aproximava rapidamente do local. O automóvel saiu da avenida e foi depressa até a ladeira. Freou em cima da multidão de alunos. A porta abriu e um homem desceu apressado do carro. Era Anacleto. O pai de Zeno e Gelásio.

14. A guerra interrompida
— Não acredito! — gritou Anacleto, olhos arregalados e cabelos arrepiados pelo vento. — Quando me contaram que vocês iam fazer isso, não acreditei... mas então é verdade? Zeno e Gelásio tinham descido das bicicletas e tirado os capacetes. Olhavam em silêncio para o pai enfurecido. — Fiz uma pergunta... então é verdade mesmo que vocês iam se jogar ladeira abaixo, em bicicleta sem freio? O silêncio emburrado dos meninos confirmou a verdade. — Que loucura! — completou Anacleto, só agora percebendo a multidão nas calçadas. — E o que essa meninada está fazendo aqui? Como ninguém respondeu, Anacleto gritou para a plateia: — Que é que vocês querem? Não têm mais o que fazer? Nenhum de vocês parou uma maluquice dessas? Vocês querem o quê, ver sangue? Bando de... Anacleto soltou outros bons desaforos para os colegas dos filhos. Um e outro garoto foi saindo de fininho. Percebendo que não ia acontecer a disputa, aos poucos, zenistas e gelasistas abandonaram o local e trataram de cuidar da própria vida. A rua ficou deserta. — O que vocês têm a me explicar agora? — perguntou Anacleto, vendo-se quase a sós com os filhos. — Quem foi que avisou o senhor? — falou Zeno. A resposta veio de Dinorah: — Fui eu que liguei para o seu pai, Zeno. — Você? Mas Dinorah, se era por você que a gente ia... — disse Gelásio. — É, Dinorah — filou Zeno. — A corrida era por um beijo seu e... — Era mesmo, Zeno? De verdade, Gelásio? Era por mim? Mas eu não queria isso! A menina estava com o rosto corado pelo frio. Evitava olhar para os irmãos, mas acabou reunindo
coragem e falou de uma vez, olhando de um para o outro: — Posso gostar de vocês assim, como amigos... mas não para outra coisa. Eu não queria que vocês brigassem, eu não queria que vocês fizessem essa corrida, eu não queria dar beijo em nenhum de vocês, não. Desculpem. — Vocês iam fazer uma maluquice dessas só por causa do beijo de uma menina? — perguntou o pai. — Só por isso? — Desculpem... — falou Dinorah de novo. — Eu vou embora. Os irmãos nada responderam. Seguiram com os olhos o vulto esguio da menina, sumindo pela avenida. E enquanto o pai levava as bicicletas até o carro, xingando e reclamando contra os filhos, Zeno e Gelásio continuaram olhando-se, muito sérios.

15. Resposta final

Foi naquele fim de tarde, depois que a Grande Disputa acabou encerrada com a interferência paterna. Quando o pai recolhia as bicicletas e se armava de um arsenal de frases prontas, broncas e reclamações e os dois garotos descobriram que não seria daquela vez que disputariam sua Grande Prova... ...que os olhos deles se fixaram uns nos do outro. Por um longo tempo. Zeno e Gelásio continuaram olhando-se, muito sérios.
Sabiam que não tinha sido daquela vez, mas acabaria sendo em outra.
A Corrida Ideal, a Grande Disputa, ainda iria acontecer.
Nem que fosse na Fórmula 1, dali a dez anos, mas os irmãos descobririam quem era o melhor. Quem era o Campeão.
Porque se não fizessem isso na vida, que graça a vida iria ter?
Fim
ESPORTES
_________________________________________________________________
Pai adverte os irmãos Schumacher
Um senhor alemão, ex-zelador e pouco conhecido do público, ameaça interferir na disputa deste e dos próximos Mundiais de F-1.
‘‘Se for necessário, vou falar com os dois. Espero que isso não seja necessário”, diz Rolf Schumacher, em entrevista publicada por jornais da Itália e da Alemanha. ‘‘Um não poderá colocar a vida do outro em risco nunca.”
Rolf é pai de Michael e Ralf, irmãos que monopolizaram as atenções nas duas últimas etapas do Mundial e que, neste ano, já dividiram um pódio e três primeiras filas em grids de largada.
O auge da disputa entre os dois aconteceu em Nurburgring, no último domingo. Na pole, Michael, 32, tricampeão mundial, deliberadamente espremeu Ralf, 25, no lado direito da pista antes de contornar a primeira curva.
Instantes depois da prova, o caçula ainda estava irritado com a manobra. ‘‘Ele foi muito bruto no começo da corrida e quando foi para o primeiro pit stop”, disse Ralf, em referência à entrada brusca de seu irmão nos boxes.
Mais tarde, reflexo de uma conversa que teve com o pai, adotou um tom mais ameno: ‘‘Michael foi duro sim, mas muito leal”.
Ralf teria telefonado para o irmão ainda no domingo à noite, e ambos teriam concluído que não havia razões para uma discussão.
A F-1 espera um novo embate para o autódromo de Magny-Cours, que recebe amanhã o primeiro treino livre para o GP da França, décima etapa do Mundial.
E, com a decadência da Mc Laren e a ascensão da Willams nas últimas provas, a expectativa é que os dois sejam os principais concorrentes ao título de 2002.
Nesta temporada, Ralf sofreu com quebras do carro. Mesmo pontuando em apenas quatro GPs, hoje ele é o quarto colocado no Mundial, a apenas um ponto do ferrarista Rubens Barrichello.
O caso da família Schumacher é inédito na F-1. Antes dela, três duplas de irmãos já haviam corrido simultaneamente na categoria, entre eles Emerson e Wilson Fittipaldi Júnior (35 GPs, entre 1972 e 1975).
Nunca, porém, dois irmãos haviam obtido tanto sucesso.
Na Europa, Michael e Ralf já são comparados às irmãs Vênus e Serena Williams, respectivamente segunda e quinta colocadas no ranking da WTA (entidade que comanda o tênis feminino).
(Folha de S. Paulo, 28 de junho de 2001).

Um comentário:

Vitória Nunes disse...

Esse paradidático é super legal!!!
Eu adorei ele!!! :))

Vitória Nunes.