A Boitatá
Isto foi há muitos anos, no tempo em que não existiam máquinas, os animais andavam livres nas matas ou nos campos e os índios eram mais numerosos que os brancos. Havia tanta terra disponível que era possível mudar de um lugar para outro sem problemas.
Uma tribo buscava um novo lugar para se estabelecer.
Foram muitos dias de andança até chegar a uma planície extensa, com árvores e água
A noite foi chegando devagarinho [...].
Antes de se deitar, o mais velho entre os homens disse com orgulho:
- Faremos um roçado(4) tão grande que, quando o queimarmos, o incêndio vai esconder o Sol.
Todos festejaram sua fala. E ele acomodou-se na rede para dormir.
Depois do tempo de sono, abriu os olhos, mas estava muito escuro, coisa que estranhou. Nem um feixe de luz! "Deve ser muito cedo ainda", pensou. "Acho que estou com vontade de fazer o dia amanhecer."E fechou os olhos novamente. Mas as horas passavam lentamente, sem que um fio de luz anunciasse o Sol. Um menino comentou que os grilos não cantavam, que não havia vento nem orvalho.
A escuridão e o silêncio foram deixando todos assustados. Fora o murmúrio das pessoas, só o canto do quero-quero fazia-se ouvir de vez
De repente, uma luz riscou o céu. Inicialmente um brilho suave, mas, depois, antes que começassem a festejar, um clarão mais forte que o de um raio, fazendo o verde do mato ficar branco feito leite e cegando por instantes os olhos de todos os viventes. Tudo despertou, de repente; lagartos, cobras, grilos, preás, pássaros, vento, capim... mas num escarcéu(6) de pânico e terror. Depois a luz foi diminuindo, até que se tornou possível ver que o Sol havia aparecido e a noite se fora.
Vendo que a calma voltava e que os homens juntavam suas ferramentas para o trabalho, o índio mais velho reuniu todos e advertiu(7):
- Aquilo que vimos, antes de o Sol aparecer, era a Boitatá. Ela veio para nos avisar que não devemos fazer a queimada,
- E o que é a Boitatá? - perguntou ansioso um dos meninos.
O velho se pôs a contar a história que havia escutado de seus avós:
- Faz muito tempo, houve uma grande inundação na Terra, Todos os animais, depois de fugir para os lugares mais altos, tentando salvar-se, foram tragados. Não houve toca ou copa de árvore que escapasse. As águas cobriram tudo, como se quisessem lavar o mundo. Nem a boiguaçu, a cobra grande, que hibernava(8), pôde continuar seu sono. Mas, como era bicho tanto da água como da terra, saiu nadando tranqüilamente. Quando as águas começaram a baixar, foram surgindo ilhotas, e aí se viu a mortandade. A boiguaçu começou, então, a devorar os animais mortos, mas somente os olhos deles. E quanto mais as águas baixavam, mais bichos apareciam para satisfazer sua gula. Sendo bicho sem pêlo nem pena, sem escama nem casca, seu corpo foi ficando transparente e iluminado. Cada olho que ela comia era uma luzinha que se acendia dentro dela. Desse modo, depois de haver comido tantos, a boiguaçu transformou-se em uma claridade que serpenteava(9) pelo chão. Os primeiros que a viram não a reconheceram. Deram-lhe o nome de Boitatá (cobra de fogo). Embora tivesse comido muitos olhos, eles não a alimentaram, apenas a iluminaram, de modo que acabou morrendo. Mas a luz que estava dentro dela escapou e saiu por aí, sem rumo, assustando as pessoas e perseguindo os desprevenidos. Essa luz é a Boitatá, que, por sua gula, foi condenada a vigiar para sempre os campos virgens contra os que querem incendiá-los. E ela só aparece no verão, como uma bola de fogo, correndo pelas planícies de um lado para outro, incansável, sem queimar as plantas ou as árvores, sem esquentar a água dos rios ou dos lagos. No inverno tirita(10) de frio, mete-se numa toca e repousa.
- Então, teremos de abandonar este lugar? - perguntou um jovem.
- Não será preciso - disse o velho. - Apenas não poderemos pôr fogo no roçado para a limpa e o plantio. Teremos muito mais trabalho, mas obteremos bons resultados.
- E se a Boitatá aparecer de novo? - perguntou uma das crianças, para se certificar de que não havia mais perigo.
- Digo a todos - respondeu o velho - aquilo que me disseram meus avós: ela só virá para nos vigiar, para ter certeza de nossas boas intenções. Quando a virem, bastará fecharem os olhos e permanecerem imóveis sem respirar, até sentirem que ela se foi. Pois, do contrário, a Boitatá os perseguirá e aturdirá(11) até matá-los.
[Recriação de Mitsue Morissawa. In Contos de animais fantásticos. Co-edição latino-americana. São Paulo, Ática, 9992.]
A PALAVRA NO TEXTO
1. prado: campo gramado
2. preá: tipo de coelho selvagem
3. caititu: cateto; porco-do-mato
4. roçado: terreno em que o mato foi cortado para plantação
5. presságio: previsão; pressentimento
6. escarcéu: alvoroço; gritaria
7. advertir: avisar; alertar
8. hibernar: praticar hibernação (sono profundo em que certos animais entram durante o inverno)
9. serpentear: andar imitando serpente
10. tiritar: tremer (de frio)
11. aturdir: fazer ficar tonto; estontear
Estudo do texto:
1. Uma tribo estava à procura de um lugar.
a) Para quê?
b) O lugar que os índios encontraram era adequado para o que eles pretendiam Por quê?
2. Responda, de acordo com as informações do 15º parágrafo.
a) Na história que o índio mais velho conta aos outros, que fato causou a morte de muitos animais?
b) O que era a boiguaçu?
c) Como ela era antes de se transformar em Boitatá? (0,2)
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