sexta-feira, 17 de julho de 2009

Papai Noel

-E quanto o senhor paga?

-Quinze cruzeiros por dia.

Fez as contas, antes de aceitar. Trabalharia dez dias, portanto...

-E a roupa?

-Roupa é por minha conta. Aceita?

Aceitou. Começaria amanhã.

Contou à mulher que conseguira uma coisinha até arranjar algo melhor. Explicou do que se tratava.

-Vou me vestir de Papai Noel e ficar na calçada fazendo o povo entrar na loja. Propagandista, como o homem lá disse.

A mulher achou ridículo, mas não falou o que achava. Até lhe deu força.

-Qualquer trabalho honesto é bacana.

A roupa tinha sido usada, no ano passado, por um homem mais gordo. Apertou o cinto um furo ainda além do necessário para não a sentir sobrando no corpo.

-Vamos entrando, meus amigos. Aqui em “Habib & Irmãos”, tudo por um preço de pai para filho...

Avermelhava-se a cada grito que dava. A barba de algodão, o bigode malfeito incomodavam-no. Seguidamente procurava dar um jeito melhor na barba.

-Tudo em remarcação, tudo abaixo do custo!...

As mães esticavam-lhe os filhos para que ele lhes desse um beijo, um conselho.

-Olha Papai Noel, filho. Fala com Papai Noel.

Os meninos, mais encabulados do que ele, emudeciam. Apenas corriam os olhos pelo seu rosto, sua roupa, seus sapatos.

-Papai Noel sem bota? gritavam os garotos mais espertos.

Queria esconder os pés, calçados nos seus próprios sapatos. Sugeriu que lhe comprassem umas botas.

-Assim está muito bom.
O dono da loja não queria despesas maiores.

-Entrem... entrem ... Eu compro aqui.

Se Papai Noel comprava ali, ali deveria ser tudo mais em conta – pensavam assim os donos da loja. Um homem, vestido de Carlitos, fazia a propaganda da casa em frente, rodando a bengala sem graça, caminhando sem jeito com pés abertos.

-Olha Papai Noel...

Um pretinho lhe beijou o rosto. Achou desagradável o contato da boca no algodão da barba. Cuspiu os fiapos que ficaram.

Assim foi durante os dez dias do trato.Temia ser reconhecido por um amigo. A cada dia fazia a barba maior e aumentava o bigode, querendo colocar uma parede no rosto. Tornar-se irreconhecível. Os sapatos, pelo menos, estavam, no final, engraxados. O cetim da roupa, amassado e rasgado em muitos pontos, já desbotara pelas inúmeras lavagens e pelo tempo em que ficava guardado, aguardando o Papai Noel do próximo ano. O cinto acinzentava-se na altura da fivela pelas tantas vezes em que fora aberto e fechado.

-Vamos lá, minha gente... Em “Habib & Irmãos” é tudo de graça.

Balançava o sino que lhe puseram na mão a contragosto.

-Badala direito – advertiam os Habibs.

Chamando a atenção, agitava o sino com furor. Havia os que lhe viravam as costas e os que riam dele, achando-o tão imbecil quanto ele próprio se achava.

-Tem gente que se presta a cada papel...

-Entrem, entrem...“Habib & Irmãos” é a loja onde eu compro

-Onde é o circo, ó palhaço?

-Tudo remarcado...

-Tão grande e tão bobo...coitado.

-...abaixo do custo.

-Me dá um presente, ó Papai Noel de araque!...

-Quinze cruzeiros por dia, para gritar o nome da loja, badalar o sino, fazer-se ridículo.

Avistou um conhecido adiante, na calçada do outro lado. Entrou na loja.

-Como é?

-Vou urinar, Seu Habib.

-Papai Noel não urina.

O patrão o fez voltar à calçada. Ficou de costas para o amigo que passou sem vê-lo, felizmente. Mas era o último dia. Largaria às oito. Por ser véspera de Natal, a loja fechava mais tarde, na esperança dos derradeiros fregueses retardatários. Depois das sete já não havia movimento. Sugeriu parar.

-Por quê? Só fechamos às oito. Grita e badala o sino. Vamos lá.

Sua voz e seu sino foram, por algum tempo, os únicos barulhos da rua.

-Em "Habib & Irmãos” ... – recomeçava, já rouco.

Largou às oito. Devolveu a roupa e recebeu o dinheiro. Enfiou no bolso os cento cinquenta cruzeiros mais sofridos que ganhara na vida e caminhou para a Central, em busca do trem que o levaria a Realengo.

Chegou em casa às dez e meia. A mulher o esperava no portão. Beijou-o na testa e ele lhe entregou, disfarçado, o pacote do trenzinho que seria colocado de noite ao lado da cama do filho.

-Tudo bom?

-Tudo bom.

O filho já fora dormir. Deitara mais cedo por medo de Papai Noel esquecer dele.

Acordou às sete com o barulho do trem de plástico correndo no quarto ao lado. Foi ver o filho. Parou na porta, feliz, vendo o menino recolocar o trem que insistia em sair dos trilhos.

-Olha, pai!

-Que bonito!

-Papai Noel que me deu...

-Foi, filho? – perguntou, fingindo surpresa.

-Olha só.

O filho mostrou a beleza que era o trem correndo.

-Lindo.

-Papai...

A mulher já estava ao seu lado quando o menino falou.

-Uns garotos na rua me disseram que Papai Noel não existe.

Foi a mulher quem respondeu:

-Existe sim, filho...

Ao responder, a mulher apertava com força o braço do homem. Foi-lhe agradável notar que a mulher falara com absoluta convicção.

CHICO ANÍSIO. Papai Noel. In: O enterro do anão. Rio de Janeiro, Sabiá, 1973. p. 112-4.

Nenhum comentário: