quarta-feira, 15 de julho de 2009

Menino de Engenho é, sem dúvida, a obra-prima do paraibano José Lins:

Dona Clarisse

Todos os retratos que tenho de minha mãe não me dão nunca a verdadeira fisionomia que eu guardo dela - a doce fisionomia daquele seu rosto, daquela melancólica beleza de seu olhar. Ela passava o dia inteiro comigo. Era pequena e tinha os cabelos pretos. Junto dela eu não sentia necessidade de meus brinquedos. D. Clarisse, como lhe chamavam os criados, parecia mesmo uma figura de estampa. Falava para todos com um tom de voz de quem pedisse um favor, mansa e terna como uma menina de internato. Criara-se em colégio de freiras, sem mãe, pois o pai ficara viúvo quando ela ainda não falava. Filha de senhor de engenho, parecia mais, pelo que me contavam dos seus modos, uma dama nascida para a reclusão.

À noite ela me fazia dormir. Adormecer nos seus braços, ouvindo a surdina daquela voz, era o meu requinte de sibarita pequeno.

Ela me enchia de carícias. E quando o meu pai chegava nas suas crises, exasperado como um pé-de-vento, eu a via chorar e pronta a esquecer todas as intemperanças verbais do seu marido. Os criados amavam-na. Ela também os tratava com uma bondade que não conhecia mau humor.

Horas inteiras eu fico a pintar o retrato dessa mãe angélica, com as cores que tiro da imaginação, e vejo-a assim, ainda tomando conta de mim, dando-me banhos e me vestindo. A minha memória ainda guarda detalhes bem vivos que o tempo não conseguiu destruir.

REGO, José Lins do
. Menino de Engenho. 68ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1997. p. 5.

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