segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Um menino observador e sensível relata suas impressões sobre o relacionamento entre as pessoas, os sentimentos, as emoções, a vida, enfim. Vamos conhecer um pouco desse seu modo de ver o mundo?


Menino sentindo mil coisas

Na vida muita coisa parece que é e é, e muita coisa parece que é mas não é. Fora isso, muita coisa acontece e a gente nem vê. Não tem nada no jardim e quando a gente vai ver, brotou uma flor. Uma pessoa pode estar sonhando acordada do lado da gente e a gente não percebe. Uma pulga conversa com outra pulga atrás de uma orelha e o dono da orelha nem desconfia. Dois colegas estão ao nosso lado. Um, cheio de ideias na cabeça, outro, cheio de piolhos, e a gente ali, calmamente, sem saber de nada.

Uma coisa é certa: quando a gente conhece uma pessoa, a gente sempre ou gosta ou não gosta. Se gosta, gosta sem saber por quê. Não dá para explicar. Gosta porque gosta. Gosta porque sente uma coisa boa no ar. Ou por causa de um certo jeito, de um sorriso, um brilho nos olhos.

Quando não gosta é a mesma coisa. A pessoa não fez nada de errado, mas a gente sente uma coisa esquisita, fica sem confiança, sem vontade de ficar perto. Às vezes a gente está certo. Outras vezes não.

Quando eu mudei de escola, o Diogo sentava na carteira da frente. Não fui com a cara dele nem ele com a minha. Uma vez a gente até se pegou de tapa por causa de nada. O tempo passou e a gente se conheceu melhor. Hoje, o Diogo é meu amigo do peito. A gente joga bola todo dia, fez coleção de figurinha junto, torce para o mesmo glorioso time, participa do campeonato de botão e acha a Gabriela mais linda do que toda as meninas da classe, da escola, do bairro, da cidade e até do país inteiro também.

A dona Josefa, bisavó da Tatiana, fuma charuto e acredita em alma do além e fantasma do outro mundo.

O professor Barbosa garante que a ciência moderna um dia vai conseguir decifrar todos os mistérios do mundo em que vivemos.

O Carlão tem certeza absoluta de que o Corinthians, dessa vez, vai conseguir ganhar o campeonato brasileiro com um pé nas costas.

Pode ser.

Outro dia, o Beto apareceu com dor de dente e meu avô disse, com aquela voz velha dele: – Aguenta firme. Isso passa. É como dizia o Barão de Itararé: na vida, tirando o motorista e o cobrador, todo o resto é passageiro!

Sei lá quem é o Barão de Itararé e sei lá se tudo é passageiro, mas que a vida parece um livro cheio de quase tudo, parece. E um livro cheio de quase tudo é sempre um livro cheio de mil coisas da vida.

AZEVEDO, Ricardo. Menino sentindo mil coisas. São Paulo, Ática, 1995, p. 17-23.

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