sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Nesse trecho, Amyr percebe que está sendo seguido por dourados há dias. Muito estranho isso... Ele sabe que não está livre de um "ataque" de baleia.

Durante o dia, enquanto remava, notei a presença de alguns peixes que há algum tempo me acompanhavam. Eram dourados e, prestando muita atenção, percebi serem os mesmos de alguns dias atrás.

Curiosa companhia. Pude mesmo identificar um, de coloração menos intensa, que batizei de Alcebíades, em homenagem a um morcego que residia no sótão de casa, em Paraty, e que após muitas tentativas frustradas de expulsão resolvi adotar como amigo.

Parei de remar, e eles começaram a dar voltas no barco. Por que me seguiriam?

O tempo bom e o mar tranqüilo eram uma oportuna ocasião para se fazer uma inspeção no fundo. Com certeza o limo deveria estar atraindo os dourados e, após um mês, já era tempo de uma limpeza geral. Não me agradava muito a ideia de entrar na água, não só pela lembrança de tantas barbatanas suspeitas, mas também porque fazia frio. Aproveitando o intervalo do almoço, vesti pela primeira vez a roupa de borracha. Deliciosa sensação. O calor da roupa me trouxe coragem e, munido de máscara, pés-de-pato e escova, pulei na água amarrado a um cabo.

Por baixo da água, um impressionante cenário: cinco ou seis dourados, sempre a uma pequena mas prudente distância, e, junto do leme, um bando de minúsculos pilotos, fielmente acompanhando o barco. Senti-me tão importante quanto um velho tubarão, sempre cercado por seu séquito desses pequenos e listrados peixinhos. (...)

O casco estava coberto de um limo que saiu sem muita dificuldade. Mas, mergulhando por baixo, percebi que em certos lugares os raspões provocados pelos tubarões haviam removido parte da tinta e aí começavam a formar-se pequenos moluscos que a escova não conseguia remover. Era o início de grandes problemas com a tinta.

De modo geral, as tintas de fundo são feitas à base de cobre, e, por essa razão, apresentam cor vermelho-alaranjada.

Após estudar de modo atento perto de quarenta relatos de acidentes com veleiros, em que mais da metade foi provocada por colisão com baleias, e ao tomar conhecimento de um estudo sobre atração e repulsão de cetáceos em relação à cor, que não recomendava cores como o vermelho no fundo das embarcações, pois poderiam atrair estes enormes mamíferos,optei por uma tinta especial de cor verde.

Não depositava muita fé nesse estudo, mas sabia que o problema com baleias não existe porque sejam agressivas, mas porque sendo excessivamente dóceis e curiosas costumam aproximar-se de veleiros ou embarcações que, sem motor ou outra fonte de vibração, não as espantam. E o carinho de um animal que ultrapassa quarenta toneladas e mais de quinze metros, às vezes; pode ser trágico para um barquinho com menos de seis metros.

Ao tentar remover os moluscos do fundo percebi que havia cometido uma asneira. Ao invés de passar várias demãos como pensava, atendi ao desastrado conselho do estaleiro que fizera a pintura e aplicara somente uma. A tinta não tinha boa aderência ao casco e soltava-se com facilidade.

Dentro da água, lembrei-me da surra de perguntas que me faziam antes de partir, em especial de uma feita por um amigo argentino, da Control, em São Paulo, onde foi feita a instalação elétrica e mecânica.Os funcionários da fábrica, na hora do almoço, em volta do barco, e ele me metralhando com sucessivas rajadas de perguntas:

- E se a água acabar?

- Eu aciono o destilador solar - respondi.

- E se a bateria falhar?

- Eu tenho os painéis solares e as baterias de emergência.

- E se o barco capotar?

- Eu uso o sistema de lastros líquidos.

- E se uma baleia atacar?

- Eu pinto o fundo de verde.

- E se for uma baleia daltônica?

Perdi a paciência e saí correndo atrás do meu inquisidor.

Mas ele tinha toda razão. Se uma baleia se aproximasse durante a noite, de nada adiantariam os coloridos estudos sobre a atração de cetáceos no fundo escuro do mar.

Amyr Klink. Cem dias entre céu e mar. 32ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995,p.66-68

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