sexta-feira, 11 de setembro de 2009

...E a onda levou

Era uma manhã de céu aberto e mar calmo, em Vitória, Espírito Santo. Até que uma onda vinda do nada engoliu o veleiro Conquista e levou para o fundo do mar os planos de um casal catarinense. Mas nem tudo estava perdido...

Por Juliana Borges

A primeira noite maldormida após um mês de sono tranquilo em Vitória (ES) poderia ser interpretada como um mau agouro. A previsão para aquele dia, 14 de agosto de 2004, era de mar agitado, como um aviso dos céus para não partir. Mas o vento sul que soprava havia dias no iate clube onde o Conquista, um veleiro O’Day 23, estava ancorado era convidativo demais para os catarinenses Juliano Treis e Denise de Almeida pensarem em maus presságios. Afinal, conhecer o arquipélago de Abrolhos sempre fora um sonho.

A passagem do Cruzeiro Costa Leste, uma flotilha com cerca de 40 veleiros que havia saído do Rio de Janeiro e passaria por Abrolhos, deixou o casal ainda mais animado. Eles seguiram juntos. O dia começou cedo. Antes das 7 horas, Juliano e Denise já haviam colocado a genoa no estai de proa, organizado as últimas coisas e zarpado para viagem que eles nem de longe imaginavam ser a última do veleiro que lhes servia de lar havia três anos, O céu estava claro e o vento, moderado, em tomo de dez nós (18 km/h). Pela previsão, o mar deveria ficar apenas agitado ao longo do dia.

Denise sentia-se angustiada com as ondas que quebravam na enseada e balançaram o Conquista a noite inteira, mas achou melhor guardar suas neuras. A prática da vida a bordo lhe dizia que tudo estava nos conformes. Mesmo tendo pouca experiência no mar – antes de juntar suas economias e o dinheiro da venda do carro para comprar o O’Day 23 em sociedade com o namorado, ela nunca pisara num convés –, Denise conhecia bem o veleiro. Se tudo corresse bem, em menos de 38 horas eles estariam em Abrolhos.
O
arquipélago seria uma inspiração para ela e Juliano tocarem o Projeto Água Viva, iniciado um ano antes, quando zarparam de Santa Catarina para percorrer a costa brasileira, alertando as comunidades sobre a importância de preservar os recursos hídricos. A ideia era dar palestras e promover debates sobre o tema em escolas, clubes e praias. O destino final era Manaus. Mas os dois não podiam imaginar que o
Conquista os abandonaria no meio do caminho...


O caprichado café-da-manhã a bordo ajudou Denise a relaxar. O mar tinha ondas que não chegavam a incomodar. Velejando com vento de través e pegando as ondulações na diagonal, o Conquista
contornou a ilha Rasa e rumou para a ponta do Tubarão. Sem problema. O veleiro navegava havia uns 15 minutos, a cerca de uma milha de costa (2km), quando uma visão nada agradável surgiu aos olhos de Juliano: uma onda grande e solitária, de 4 ou 5 metros de altura e muita espuma, bem perto do veleiro, Juliano, no timão, pôs o Conquista de proa para a onda e mal teve tempo de gritar.

– Dê, uma onda! Feche a gaiúta!


Mas não havia tempo para mais nada. A onda estourou sobre o convés e lançou Denise para dentro da cabine, que também ficou inundada. Numa fração de segundo, a proa do barco foi jogada para trás e o Conquista capotou duas vezes com a força da onda. Quando o barco parou de girar, Julíano colocou a cabeça para fora d’água e percebeu que estava sob o Conquista, que, por sua vez, estava de cabeça para baixo. Gritou, desesperado, o nome da companheira. Precisava encontrá-la.

Denise, que estava semi-submersa na cabine, ouviu o chamado de Juliano, esticou os braços e encontrou a mão dele. Subitamente o Conquista desvirou e, quando se deram conta, os dois já estavam de pé, em cima do convés inundado. Por um instante, pensaram que tudo não havia passado de um grande susto e que o Conquista poderia continuar ileso, apesar de encharcado.

Mas logo eles viram que o mastro, que se quebrara, padecia deitado na água. Em seguida, constataram o pior: a popa do barco estava afundando rapidamente. Desorientados, os dois correram para a proa, que também começou a ir ao fundo, poucos segundos depois. Em uma tentativa desesperada de manter o Conquista na superficie, os dois se abaixaram e se agarraram firmemente ao guarda-mancebo, como se aquele ato pudesse retardar sua partida para o fundo do mar. Mas o barco afundou, indiferente aos apelos de seus donos.


Depois de alguns segundos beirando a insanidade, os dois começaram a nadar em direção a terra mais próxima, a ilha Rasa, bem em frente ao iate clube. Não tardou para eles avistarem outros veleiros, zarpando do clube. Porém nenhum barco ouviu os chamados. Só quando já estavam próximos da ilha uma lancha resgatou os náufragos.


Denise vestia uma camiseta, blusa de lã, jardineira impermeável e um par de sapatilhas de neoprene. Juliano, apenas a jardineira e uma malha. Foi tudo o que puderam salvar. Todo o resto afundou com o Conquista.


No mesmo dia, depois de um banho quente na casa de um amigo, o casal voltou para o iate clube para tentar resgatar o barco com a ajuda dos bombeiros. Mas, como o mar estava agitado, tiveram de suspender as buscas. Na manhã seguinte, vasculhando a praia de Camburi, encontraram por toda a orla destroços do barco, utensílios de cozinha e objetos pessoais espalhados pela praia. Foi triste ver pedaços dos sonhos dos dois sendo trazidos pela maré, como se fossem lixo.

Os dias seguintes ao acidente tiveram tempo ruim, o que inviabilizou a busca pelo casco do barco. Quando, enfim, o mar acalmou, o casal retomou o trabalho. Seria possível o Conquista estar ainda intacto debaixo d’água?


Um veleiro do Iate clube de Vitória confirmou que não, ao passar perto do local do naufrágio, no dia 29 de agosto, quinze dias depois do acidente. A tripulação viu uma bóia, que parecia presa ao fundo. Uma equipe de mergulhadores constatou que ali estavam as ferragens e o convés do Conquista. O casco e o motor nunca foram encontrados.


Hoje, passados alguns meses do acidente, Juliano admite que cometeu dois erros. Primeiro, não conhecia as peculiaridades do local: a baía do Espírito Santo tem um lajeado que praticamente atravessa o fundo de um lado ao outro, elevando seu relevo de menos de 10 m para até 3,5 m na maré baixa. Com ondas vindas do sul, esse cordão de pedras provoca arrebentações na maré baixa. E foi justamente o que aconteceu no dia do naufrágio do Conquista.

O segundo erro foi o excesso de confiança, que os levou a velejar com a gaiúta principal aberta. “Como o vento não soprava forte e o céu estava claro, relaxei na segurança”, lamenta Juliano. “Se o barco estivesse todo fechado, teríamos capotado, perdido o mastro, mas o Conquista não teria afundado.”


Mesmo com essa importante perda, Juliano e Denise não desistiram do Projeto Água
Viva, agora rebatizado Projeto Reconquista, uma homenagem ao veleiro perdido.


Agora, eles estão procurando um barco menor para seguir viagem. “Desta história, uma coisa boa podemos tirar: fizemos grandes amigos pelo Brasil. Não vamos desistir só por causa do que aconteceu”, garante Denise.


Revista Náutica, nº 195. Sáo Paulo, Grupo Um Editora, 2004.



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