sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O texto que você vai ler é o relato vivo e emocionante de um dos episódios vividos por Vito e Renato,em sua viagem de caiaque descendo o rio Xingu, então pouco explorado. Vito conta os momentos de grande tensão que ele e seu companheiro viveram, ao mesmo tempo em que nos revela as peculiaridades de uma região pouco conhecida da maioria dos brasileiros.


Pela veias da selva



Após o jantar só nos restava dormir. Já era noite e o fogo ardia quando nos acomodamos nas redes. Acertei o relógio para que despertasse dali a uma hora – era preciso averiguar a fogueira. Apesar das estrelas, o tempo parecia ameaçar chuva. Adormeci pensando na importância de ter chegado até aqui. Tranquilo sentia meu caminho vivo.


A história de nossa primeira noite no rio poderia ter acabado aí. Mas estava apenas começando.

Despertei às nove e quarenta e dois, antes do relógio. Através da rede, não vi a claridade avermelhada do fogo. A fogueira já era. Me preparei para sair e reacendê-la. Enquanto abria o zíper da rede, observei pela malha do mosquiteiro a lua branca e brilhante. Tudo é silêncio, magia e mistério. Foi com os olhos grudados no brilho da lua que coloquei meio corpo para fora. Lentamente baixei o olhar pela silhueta negra da floresta perdida no horizonte e que, aos poucos, fundia seus reflexos nas águas prateadas do rio iluminado. Eu flutuava nesse universo de imagens num estado de semi-sono quando fui brutalmente arremessado à realidade. A visão é assustadora. A dois metros de onde estou, a mansidão das águas nas margens da ilhota foi trocada pelo brilho frio e vermelho de dezenas de pares de olhos. Uma cordilheira de sombras negras recortadas no clarão da noite. São jacarés. Essa imagem causa sensações inéditas e indescritíveis. Não sei dizer se o que sinto é medo ou a grande emoção de sentir que o risco é a mais clara manifestação da força da vida.

Jacarés... Imediatamente se acende em minha memória a imagem dos índios e seu “hino” profético: “Jacaré vai comê caraíba... Jacaré vai comê caraíba...” As palavras dançam pela minha cabeça em ritmo acelerado, acompanhando as batidas do meu coração. Desde o primeiro momento a prudência me fez acreditar nas palavras dos índios; mas eu não esperava que isso acontecesse tão cedo.

A tensão é forte. Por segundos fico completamente estático, apenas observando nossas visitas, ou melhor, nossos anfitriões, pois ali no meio da Amazônia os hóspedes somos nós. É preciso fazer alguma coisa, e rápido. Sem desviar o olhar daquele mundo de olhos um só minuto, fui tateando a rede às minhas costas até alcançar a lanterna e o revólver. Feito isso, passei a chamar Renato. Preocupado em não ser o centro das atenções — se já não o era —, minha voz mais parecia um sussurro. Diante da indiferença de meu companheiro, envolvido em sono pesado, inconscientemente ergui a voz. Imediatamente houve uma leve movimentação na água, o que àquela altura tinha o efeito de um terremoto. Ouvi a voz embargada de Renato. Controlando minha ansiedade, disse:

– Abra sua rede devagar e olhe para fora...

Eu não podia vê-lo, mas a tensão me fez acompanhar seus movimentos pelos ruídos. Quando o zíper da rede cessou seu trajeto, fez-se um tempo de silêncio até que ouvi sua voz assustada:

– Meu chapa!...

Pelo timbre, imaginava sua expressão de espanto. Renato também buscou sua arma e, lentamente, saímos juntos da rede. Nos encontramos de costas e chegamos a um consenso. O primeiro passo seria afugentar os animais. Depois, acender o fogo. Atirei para o alto. O estrondo seco foi seguido por incontáveis mergulhos e rabadas na água, por toda a nossa volta. Temporariamente estávamos mais uma vez a sós.

A lenha que tínhamos não daria para toda a noite. Munidos de lanternas, facão e muita atenção passamos a recolher o que restava de madeira seca em nosso claustro insular. Começava aí uma longa e tenebrosa jornada noturna. Nos revezaríamos a cada duas horas em vigília. Os minutos escoavam lentamente e a situação me fazia recordar o ano em que estive no Exército. As horas que passei de sentinela foram incontáveis e serviram para me fazer descobrir a importância da solidão e a força da reflexão, viagens que empreendemos através de nosso pensamento.

A pouca lenha nos obriga a administrar muito bem cada graveto. O silêncio é brutal e qualquer ruído leva a um estado de alerta. Um leve som vem do casco de nossos barcos. A imaginação me faz crer que são filhotinhos de jacaré. O sono tenta me vencer, mas a tensão é muito mais forte. Ilumino com a lanterna os barrancos próximos. Centenas de olhos me miram atentos. Talvez estejam apenas esperando eu dormir para atacar. Foram horas intermináveis de tensão. Quando o último graveto foi absorvido pelas chamas, as primeiras luzes começam a raiar. Traziam com elas a mansidão e a segurança da manhã, o que nos garantiu algumas horas de sono tranquilo.

Começamos o segundo dia com a lentidão de uma noite maldormida. Depois do café da manhã, arrumamos nossas coisas nos caiaques e nos preparamos para sair. Consultando os mapas, descobrimos que a pequena ilha em que estávamos tem o nome de ilha do Natal, o que não tornava nossa manhã mais festiva. Ironicamente, Renato comentou:

– Ilha do Natal!... Por pouco não viramos ceia...

Barcos na água, iniciamos mais uma jornada.

Vito D’Alessio. Pelas veias da selva. São Paulo, FTD, 1992. Coleção Diário de bordo.

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