Muitos e muitos metros acima do bem e do mal
No fim da rua havia um terreno baldio, e no fundo deste, uma casa em ruínas, na qual Lúcia e eu costumávamos brincar. Todos diziam que a casa era mal-assombrada, que fantasmas eram vistos seguindo por ali. Mas Lúcia e eu não tínhamos medo. Não tínhamos medo de nada. Estávamos ambos com dez anos, idade em que as crianças costumam ter medo de fantasmas, mas nós, nós não tínhamos medo de nada. Quer dizer: eu pensava que não tinha medo de nada – até que uma tarde, quando íamos entrar em casa, ouvimos lá dentro gemidos abafados. No instante seguinte, eu estava longe, os cabelos em pé, o coração batendo forte. Lúcia não fugiu.
– Vem – gritava – isso não e fantasma, isso é gente!
Aproximei-me cautelosamente. Entramos. Esperamos que nossos olhos se acostumassem à escuridão.
– Olha aí – murmurou Lúcia.
Olhei e vi – o velho mais velho, mais mirrado que eu já tinha visto. Estava deitado atrás de uma pilha de tijolos, todo encolhido na sua roupa esfarrapada.
Lúcia agachou-se junto a ele e ficou a olhá-lo. Eu, por mim, teria ido embora, mas ela parecia fascinada por aquele velho molambento, com jeito de doente – e que fedia como o diabo.
– Está se sentindo mal? – ela perguntou, desnecessariamente, a meu ver; o velho estava mal, muito mal. Nem respondeu: gemia, gemia. Lúcia colocou a mão na testa dele.
– Está com febre? – perguntei.
– Acho que não – ela disse. – Está até gelado, o coitadinho.
(O coitadinho. Era assim que daí por diante se referia ao velho: o coitadinho. “O coitadinho está com fome. O coitadinho está com frio.” Nunca descobrimos o nome dele.)
Pôs-se de pé, decidida:
– Vamos trazer comida para ele. Comidas, roupas e um cobertor.
Eu não estava muito de acordo. Sim, eu achava que o velho poderia estar com fome, e com frio; era inverno, e o inverno no Rio Grande é rigoroso; mas daí a nós providenciarmos essas coisas, daí a nós cuidarmos do velho, ia uma distância muito grande. Melhor seria avisarmos alguém, a polícia.
– Lúcia, quem sabe a gente...
Nem me ouviu. Já estava agindo; já estava correndo para casa; já estava voltando com pão, uma coxa de galinha, maçã, e já estava querendo fazer o velho comer. Bem intencionado, mas inútil. A criatura sacudia a cabeça de um lado para outro, choramingando. Lúcia ficou a mirá-lo, testa franzida.
– Já sei – disse, por fim. – Não pode comer porque não tem dentes.
Foi de novo até a sua casa e voltou com a mamadeira da irmãzinha, cheia de leite. Introduziu o bico na boca do velho, que se pôs a sugar avidamente.
– Estava resolvido o problema – disse, satisfeita.
Resolvido o problema? Não me parecia. De que jeito iríamos cuidar do velho, ali, numa casa em ruínas? E sem que ninguém soubesse? ) Porque Lúcia me exigia silêncio: “É um segredo nosso, não conta para ninguém, nem para teus irmãos.”)
Encarregou-me de providenciar roupas e cobertores. No sótão da minha casa, havia uma arca com os pertences do meu falecido avô, e foi de lá que tirei essas coisas. Até um colchão levei para o velho, na calada da noite.
– Ótimo – dizia Lúcia. – A gente tem de cuidar bem do coitadinho.
O velho melhorou um pouco. Tomava bem o leite, às vezes aceitava uma maçã ralada, uma bananinha esmagada com açúcar e canela, uma sopinha, um purê de batatas. Mas não levantava do colchão; ficava o tempo todo deitado, apático. E não falava; não sabíamos quem era, de onde tinha vindo.
Cuidar dele era uma mão-de-obra. Não se alimentava sozinho, fazia as necessidades no colchão. Tínhamos de mudá-los duas vezes por dia; lavávamos as roupas em nossas casas, escondidos, naturalmente, e as levávamos para secar num outro terreno baldio, bem mais distante. Um transtorno. Eu, francamente, estava cheio. Não via a hora de me livrar daquilo.
Percebia isto, a minha má vontade. Quando eu me aproximava, começava a chorar; às vezes, tentava me arranhar, me morder. Lúcia achava graça: “Ele não gosta de ti”, dizia.
Dela, gostava. Isso era evidente. Mal entrávamos, estendia para ela os bracinhos descarnados. Lúcia abraçava-o, beijava-o, falava-lhe como se fosse uma criancinha, às vezes colocava a cabeça dele em seu colo, o velho ronronando, todo satisfeito. O que me deixava contrariado, aborrecido. Sacanagem, era o que eu pensava. E foi o que eu disse a Lúcia: Isso aí é sacanagem. Ela se ofendeu, parou de falar comigo. Fizemos as pazes, mas só depois que pedi desculpas. A ela e ao velho molambento.
Um dia o encontramos morto. Lúcia ficou arrasada. “Logo agora, que estava melhorando”, dizia chorando. Consolei-a como pude, e tratei de enterrar o velho. Ali mesmo no terreno baldio. Naquela noite, trouxe de casa uma pá, cavei um buraco e nele depositei o corpo, enrolado no cobertor que fora do meu avô. Cobri-o com terra, coloquei em cima umas pedras, uns galhos, e pronto, a coisa estava feita.
No terreno baldio construíram, muitos anos depois, um enorme edifício de apartamentos. Ali fomos morar, Lúcia e eu, quando casamos. Temos dois filhos, um casal. Somos muito infelizes. Às vezes, Lúcia diz que isto é porque vivemos sobre os ossos do pobre velho. Não acredito. Afinal, são doze andares, e nós moramos na cobertura. Muitos metros, portanto, acima do bem e do mal.
Moacyr Scliar. Jornal O estado de São Paulo, 03 de março de 1985.
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