quarta-feira, 23 de julho de 2008

Vamos "Quintanear" mais um bocadinho?

Canção da ruazinha desconhecida
Mário Quintana

Ruazinha que eu conheço apenas
Da esquina onde ela principia...
Ruazinha perdida, perdida...
Ruazinha onde Marta fia...
Ruazinha em que eu penso às vezes
Como quem pensa numa outra vida...
E para onde hei de mudar-me, um dia,
Quando tudo estiver perdido...
Ruazinha da quieta vida...
Tristonha ... tristonha...
Ruazinha onde Marta fia
E onde Maria, na janela, sonha...




Canção de nuvem e vento
Mário Quintana

Medo da nuvem
Medo Medo
Medo da nuvem que vai crescendo
Que vai se abrindo
Que não se sabe
O que vai saindo
Medo da nuvem Nuvem Nuvem
Medo do vento
Medo Medo
Medo do vento que vai ventando
Que vai falando
Que não se sabe
O que vai dizendo
Medo do vento Vento Vento
Medo do gesto
Mudo
Medo da fala
Surda
Que vai movendo
Que vai dizendo
Que não se sabe...
Que bem se sabe
Que tudo é nuvem que tudo é vento
Nuvem e vento Vento Vento!



O dia abriu seu pára-sol bordado
Mário Quintana

O dia abriu seu pára-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
Mi-nu-ci-o-as-men-te desenhado.
Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua - a Lua! – em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...
Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!
E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranquila de um açude...


A porteirinha
Mário Quintana

Sete anos já fizeste
Quando fui te visitar
Fiquei encantado a olhar
- com o sorriso que me deste -

uma linda porteirinha em teus dentes de rato.
Mas nem deves ficar triste,
Deixa de lado o recato.
Deves até tirar retrato sorrindo assim lindamente.
Fará bem a toda gente!
Num mundo tão mascarado
O sorriso mais sincero é o sorriso desdentado.



Cantiguinha de verão
Mário Quintana

Anda a roda
Desanda a roda
E olha a lua a lua a lua!
Cada rua tem a sua roda
E cada roda tem a sua lua
No meio da rua
Desanda a roda:Oh,
Ficou a lua
Olhando em roda...
Triste de ser uma lua só!



Noturno arrabaleiro
Mário Quintana

Os grilos ... os grilos ... Meu Deus, se a gente
Pudesse
Puxar
Por uma
Perna
Um só
Grilo,
Se desfiariam todas as estrelas!



Canção de domingo
Mário Quintana

Que dança que não se dança?
Que trança não se destrança?
O grito que voou mais alto
Foi um grito de criança.
Que canto que não se canta?
Que reza que não se diz?
Quem ganhou maior esmola
Foi o Mendigo Aprendiz.
O céu estava na rua?
A rua estava no céu?
Mas o olhar mais azul
Foi só ela quem me deu!



Poema do fim do ano
Mário Quintana

Lá bem no alto do décimo-segundo andar do Ano
Mora uma louca chamada Esperança:
E quando todas as buzinas fonfonam
Quando todos os reco-recos matracam
Quando tudo berra quando tudo grita quando tudo apita
A louca tapa os ouvidos
e
atira-se
e – ó miraculoso vôo!_
Acorda, outra vez menina, lá embaixo, na calçada.
O povo aproxima-se, aflito
E o mais velhinho curva-se e pergunta:
_ como é o teu nome, menininha de olhos verdes?
E ela então sorri a todos eles
E lhes diz, bem devagarinho para que não esqueçam
Nunca:
_ O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...



Canção do primeiro do ano
Mário Quintana

Anjos varriam morcegos
Até o jogá-los no mar.
Outros pintavam de azul,
De azul e de verde-mar,
Vassouras de feiticeiras,
Desbotadas tabuletas,
Velhos letreiros de bar
Era uma carta amorosa?
Ou uma rosa que abrira?
Mas a mão correra ansiosa
_ Ó sinos, mais devagar!_
À janela azul e rosa,
Abrindo-a de par em par.
Ó banho da luz, tão puro
Na paisagem familiar:
Meu chão, meu poste, meu muro,
Meu telhado e a minha nuvem,
Tudo bem no seu lugar.
E os sinos dançam no ar.
De casa a casa, os beirais,
_ Para lá e para cá _
Trocam recados de asas,
Riscando sustos no ar
Silêncios. Sinos. Apelos. Sinos.
E sinos. Sinos. E sinos. Sinos.
Pregoeiros. Sinos. Risadas. Sinos.
E levada pelos sinos,
Toda ventando de sinos,
Dança a cidade no ar
!

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