segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Dom Ramiro vai à Europa


Ninguém, das centenas de pessoas que estavam àquela tarde no Aeroporto de Ezeiza, poderia imaginar quanto custara ao dr. Ramiro González chegar até ali: maletas fechadas a chave, passaporte e passagem na mão, esperando o momento de embarcar para a distante e mitológica Europa. Mas o fundamental é que estava tudo em ordem. E previsto.
A coisa começou vários meses atrás, quando Ramiro cedeu à pressão da filha e da mulher. "Precisas conhecer a Europa, papai. Chega de trabalhar, trabalhar. Chegaste já aos cinquenta e a vida se vai." Essas últimas palavras fizeram estremecer o acomodado coração de Ramiro: a vida se vai. No dia seguinte, no consultório, entre um cliente e outro, as palavras voltavam-lhe à memória: se vai, se vai... De volta à casa, abriu o jornal e não conseguiu ler as notícias com atenção: Paris, UP; Londres, UP; Roma, Berlim, Milão... Esses nomes de cidades famosas provocavam um redemoinho de sonhos e desejos em sua alma. E medo também. Comparava sua rua tranquila, a sala de sua casa, tudo conhecido e seguro. Por quais ruas e avenidas, por quais quartos de hotéis e restaurantes iria pervagar? Que poderia acontecer com ele e sua pobre mulher soltos num mundo desconhecido? Mas, ao mesmo tempo, lembrava-se de que a vida se ia.
Um belo dia entrou em casa decidido. Chamou a mulher e comunicou-lhe a decisão de ir com ela à Europa.
— Mas aonde? Paris? Londres?
— Ainda não sei. Vamos estudar a coisa pacientemente.
Mas, tomada a decisão, tudo se precipitou. No dia seguinte, entrava em casa carregado de folhetos turísticos, guias de viagem, mapas de cidades. Depois do jantar, ele, a mulher e a filha começaram a examinar os possíveis roteiros. Perderam nisso toda a noite e foram dormir aflitos. No dia seguinte, antes do café da manhã, já estava ele a examinar mapas e rotas aéreas. Saiu, comprou um mapa grande da Europa.  Ao fim de alguns dias, estava traçado o roteiro, e iniciou-se uma nova etapa da "viagem".  
Agora, tratava-se de escolher os hotéis em cada cidade.
— Isso se escolhe lá — sugeriu a mulher impaciente.
— Lá?! Só saio daqui com tudo acertado, ou não vou.    
Visitou agências de turismo, embaixadas, anotou preços, calculou a conversão das moedas, e numa semana definira os hotéis onde ficariam hospedados. Perfeito, mas que faremos nessas cidades? Que lugares visitaremos? A mulher fez cara de aborrecimento. Ele seguiu em frente, pesquisando os pontos turísticos mais interessantes de cada cidade: museus, igrejas...
— Não gosto de museu — declarou a mulher. — Não vou fazer uma viagem tão longa pra me meter numa casa cheia de quadros velhos!
— Quadros velhos, sua ignorante! Obras célebres!
— Quero é passear, conhecer as lojas, as ruas, os lugares bonitos.
— Isso também — admitiu ele.
E com uma caneta ia assinalando, no mapa de Paris, a rua do hotel onde se hospedariam e os diferentes pontos que visitariam.
— Na primeira manhã — dizia ele — sairemos do hotel e caminharemos por esta rua, está vendo aqui?
— Que rua? Isso é um labirinto infernal.
— Esta. Bem, seguiremos até esta esquina, dobraremos à direita, o Louvre está a umas poucas quadras...
— Desse jeito, não vai ser preciso viajar.  Já estás em Paris, caminhando pelas ruas... Que graça tem isso? 
— E que graça tem se perder numa cidade como essa, se mal sabemos algumas palavras em francês?
— Tu, porque eu falo francês correntemente!
— Eu sei!...
Houve atritos, discussões, amuos. Quase cancelam a viagem. Mas para ele isso já era impossível: se metera naquilo até o pescoço. E assim, o coração pulsando forte, Ramiro e a mulher estavam agora ali, em frente ao balcão da Aerolíneas Argentinas, prestes a voar.
E voaram. Despediram-se da filha e dos sogros, e entre vaidosos e assustados entraram no avião que os levaria até Madri, onde fariam uma conexão para Atenas.
Era uma tarde límpida e eles cruzaram o Atlântico sorrindo. Quando chegaram a Madri, muitas horas depois, o avião da conexão havia sido sequestrado. Reinava uma grande confusão no tráfego aéreo. Na confusão, as maletas desapareceram. Foram levados para um hotel que não escolheram, numa cidade que não fazia parte do roteiro que traçaram e passaram a noite lavando camisa, cueca e calcinhas para poder vestir no dia seguinte.
A mulher cantarolava e o olhava de soslaio.
— Os teus planos, hein, Ramiro?

Ele fazia que não ouvia.

      (GULLAR, Ferreira. O menino e o arco-íris. São Paulo: Ática, 2001. pp. 54-57)

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