terça-feira, 12 de setembro de 2017

Guerra

Estamos em guerra, não há dúvida. Não me refiro à guerra fria entre a URSS e os Estados Unidos nem à guerra econômica deste contra Cuba. Refiro-me à guerra cotidiana, essa que todos nós pelejamos, mal começa o dia. Guerra não declarada, não percebida pela maioria — mas guerra de fato. Nem fria nem quente: morna.
Trata-se de uma guerra minuciosa e sem quartel, sem exércitos formados e sem generais (bem, há os generais, mas, na batalha cotidiana, cada general comanda a si mesmo: e somos todos generais). É a guerra do leite, da carne, do pão, da manteiga, do emprego, do amigo, do inimigo, do lotação, do trem, do elevador. Batalhas tachistas, indeterminadas e sinuosas. Não obstante, duras.
Dentro dessa guerra cotidiana, há batalhas microscópicas: é um sujeito que lhe pisa o pé ou o empurra. Você reclama ou não, revida ou não. O outro também está guerreando, de arma em riste, e lá vai a guerra para diante. E há a guerra subterrânea da memória, a chamada luta intestina do homem consigo mesmo, do adulto com a criança soterrada, do coração com a mente. Olho da janela e vejo a avenida cheia, pessoas que vão e vêm, na aparente tranquilidade desta morna guerra.

Quem me chamou a atenção para esse fato foi um amigo, que entrou comigo numa loja de artigos para homens, na Lapa, há uns seis anos. Havia na vitrina uma camisa simpática e bem barata. O dinheiro era curto e a ocasião, propícia. Entramos para ver, mas o vendedor só nos mostrava camisas que custavam o dobro da exposta. Depois de muito,  confessou que da que estava na vitrina não havia mais em estoque.  Mas o fez com maus modos, e eu revidei: "É por isso que sua loja fica às moscas. Vocês embromam os fregueses”. Disse e fui saindo com meu amigo. E eis que o dono da loja e os empregados avançaram para nós aos insultos. Tratamos evidentemente de dar o fora, contentando-nos com os revides, de longe. Nesta altura, meu amigo teve a frase definitiva: "Vocês estão querendo é guerrear".  Era mesmo.  E nesta batalha estamos todos, inapelavelmente. Todos os dias, tomo meu banho e meu café, visto-me, dou adeus aos meninos e saio para guerrear.  À noite, se volto, volto ileso ou ferido, mas as feridas ninguém vê.

        (GULLAR, Ferreira. O menino e o arco-íris. São Paulo: Ática, 2001. Págs.73-74)

Nenhum comentário: