Guerra
Estamos em
guerra, não há dúvida. Não me refiro à guerra fria entre a URSS e os Estados
Unidos nem à guerra econômica deste contra Cuba. Refiro-me à guerra cotidiana,
essa que todos nós pelejamos, mal começa o dia. Guerra não declarada, não
percebida pela maioria — mas guerra de fato. Nem fria nem quente: morna.
Trata-se de
uma guerra minuciosa e sem quartel, sem exércitos formados e sem generais (bem,
há os generais, mas, na batalha cotidiana, cada general comanda a si mesmo: e
somos todos generais). É a guerra do leite, da carne, do pão, da manteiga, do
emprego, do amigo, do inimigo, do lotação, do trem, do elevador. Batalhas tachistas,
indeterminadas e sinuosas. Não obstante, duras.
Dentro dessa
guerra cotidiana, há batalhas microscópicas: é um sujeito que lhe pisa o pé ou
o empurra. Você reclama ou não, revida ou não. O outro também está guerreando,
de arma em riste, e lá vai a guerra para diante. E há a guerra subterrânea da
memória, a chamada luta intestina do homem consigo mesmo, do adulto com a
criança soterrada, do coração com a mente. Olho da janela e vejo a avenida
cheia, pessoas que vão e vêm, na aparente tranquilidade desta morna guerra.
Quem me chamou
a atenção para esse fato foi um amigo, que entrou comigo numa loja de artigos
para homens, na Lapa, há uns seis anos. Havia na vitrina uma camisa simpática e
bem barata. O dinheiro era curto e a ocasião, propícia. Entramos para ver, mas
o vendedor só nos mostrava camisas que custavam o dobro da exposta. Depois de
muito, confessou que da que estava na
vitrina não havia mais em estoque. Mas o
fez com maus modos, e eu revidei: "É por isso que sua loja fica às moscas.
Vocês embromam os fregueses”. Disse e fui saindo com meu amigo. E eis que o
dono da loja e os empregados avançaram para nós aos insultos. Tratamos
evidentemente de dar o fora, contentando-nos com os revides, de longe. Nesta
altura, meu amigo teve a frase definitiva: "Vocês estão querendo é
guerrear". Era mesmo. E nesta batalha estamos todos, inapelavelmente.
Todos os dias, tomo meu banho e meu café, visto-me, dou adeus aos meninos e
saio para guerrear. À noite, se volto,
volto ileso ou ferido, mas as feridas ninguém vê.
(GULLAR, Ferreira. O menino e o
arco-íris. São Paulo: Ática, 2001. Págs.73-74)
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